Recomendamos o artigo do jornalista e historiador Juremir Machado da Silva, publicado pelo Matinal
Durante mais da metade da minha vida atuei nos grandes veículos de imprensa de Porto Alegre. Passei mais de 30 anos escrevendo na Zero Hora e no Correio do Povo. Comecei jovem, de cabelos compridos e ideias curtas, e terminei de cabelos brancos. Iniciei ouvindo Janis Joplin e saí escutando Beethoven. Resisti aos sertanejos. Venci.
Hoje sou um proscrito.
Mais de 30 anos em quase 61. Era como se eu fizesse parte de um imaginário. Em outras palavras, era como estar sempre de máscara, de meia, de calça e camisa. Então, desde que fui ejetado da chamada grande imprensa pelo bolsonarismo passei a uma situação especial. Por vezes, tenho a impressão de ter virado uma entidade. Já me ouvi dizendo diante do espelho: “O veio do rio sou eu”.
– Le vieux du fleuve c’est moi!
Demitido da Rádio Guaíba por praticar crime de pluralismo, dando voz também à esquerda, o que passou a ser sinônimo de comunismo, e do Correio do Povo por não defender Bolsonaro, virei um proscrito. Nunca esquecerei daquele dia, voltando da covid, ainda com pouca voz, em que recebi a ordem do chefe geral, que depois me diria, na cara de pau, não ter poder sobre a rádio, que a entrevista com Lula não podia ir ao ar. Lula estava plugado. Prontinho para entrar. Faltavam dez minutos para começar o programa. Seria a primeira entrevista dele para nós depois da prisão. O jornalismo mandava entrevistá-lo. A militância bolsonarista encastelada no grupo Record determinava o contrário.
Era o começo do fim de grande imprensa para mim.
Por onde ando, ouço alguém perguntar:
– E aí, o que andas fazendo? Estás nalguma rádio?
Ainda outra noite, andando pelo Bom Fim, encontrei um jovem muito simpático. Ele se aproximou como que hesitando e disse:
– Juremir…
Havia tantas possibilidades nas reticências que projetou, visíveis por ele não estar usando máscara, que eu quase me comovi.
– Sim, sou eu mesmo.
Senti que ele teve vontade de tocar em mim para ter certeza. Esperei que se acalmasse diante da visão que tinha em frente, eu, com um olhar envolvido por um halo quase sobrenatural. Foi aí que arrancado de uma dimensão inefável ele se permitiu confessar:
– Eu lia o senhor no Correio do Povo.
– Obrigado.
– Meu pai lia o senhor na Zero Hora.
– Que bom!
– Minha avó via o senhor nos Guerrilheiros da Notícia.
– Bacana.
– Minha bisa leu um dos seus livros.
– Não precisava.
Acreditei por um instante que ele ia perguntar algo mais surpreendente. Respirei suavemente por trás da máscara branca.
– Por que o senhor não aparece para…?
Para quem mesmo? Ele não disse, não conseguiu dizer. Imaginei que pudesse ser para a família dele reunida na sala da tevê. Ou para o seu avô que vive num sítio. O importante é que estava comprovado: eu sou o veio do rio. O veio do rio Guaíba. Uma entidade que anda por aí. Meu nome não pode ser escrito, salvo se ninguém estiver olhando, especialmente o chefe, ou de maneira muito passageira, que não deixe rastro. O rapaz que me reconheceu na rua, apesar da noite e da máscara, garantiu que me lê diariamente no Matinal. Fiquei feliz.
Lamentou, contudo, que sua bisavó não consiga fazer o mesmo, não por desgostar do mundo virtual, da internet, dos sites, nada disso. É quando ela lê o meu nome, pensa no Correio do Povo, na sua juventude, nos bailes, nas crônicas, nos seus amores, tudo, enfim, e começa a chorar. O médico recomendou-lhe que se mantenha longe de mim.
O bolsonarismo passou na minha vida como um tufão.
Neste domingo, espero ouvir os sinos dobrarem pelo pior governo da história do Brasil, marcado por negacionismo, ignorância, obscurantismo, estupidez, burrice, preconceito e oportunismo.
Seguirei só. Porém, de alma lavada.
Definitivamente, le vieux du fleuve c’est moi.