RAFAEL MARTINELLI

O bote frio da política sobre quem tem fome: projeto cria regras para distribuir comida a moradores de rua em Porto Alegre

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Há algo muito errado quando o Estado tenta ‘organizar’ a fome. O projeto de lei apresentado pela vereadora Comandante Nádia (PL), que pretende criar regras rígidas para a entrega de alimentos a pessoas em situação de rua em Porto Alegre, é uma dessas propostas que, sob o disfarce da ‘ordem’, carrega o veneno do autoritarismo social.

A ideia é simples, e perversa: quem quiser distribuir comida deverá pedir autorização da prefeitura, cadastrar dias e horários, usar crachás e cumprir uma série de exigências que vão da limpeza do local até o controle de aglomerações. O descumprimento pode gerar multas de quase R$ 3 mil e até a proibição de seguir doando.

A justificativa soa técnica — “organizar a distribuição”, “evitar sobreposição”, “garantir higiene” —, mas o efeito resta político e moral: intimidar a solidariedade e burocratizar o ato mais simples e humano que existe — oferecer comida a quem tem fome.

É fácil falar em “organização” quando se tem o que comer. Mas para quem vive sob uma marquise ou embaixo de um viaduto, o que está em jogo não é eficiência — é sobrevivência.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, o número de pessoas em situação de rua aumentou 50% entre 2021 e 2022, chegando a 236 mil brasileiros. São homens e mulheres empurrados pela perda de emprego, o vício, a violência doméstica, o abandono do Estado.

E é justamente esse Estado, que falha em garantir o direito à moradia e ao alimento, que agora pretende multar quem tenta preencher o vazio deixado pelo poder público.

O nome disso é aporofobia — o medo ou aversão aos pobres.

É a mesma lógica que prefere escondê-los sob a desculpa da “higienização urbana” em vez de enfrentar as causas da miséria. É o velho impulso de afastar a pobreza do campo de visão, como quem varre a sujeira para debaixo do tapete.

O bote frio da política

Não há novidade no enredo: São Paulo tentou o mesmo. Lá, a proposta chegou a ser aprovada, mas a repercussão negativa foi tão grande que acabou suspensa.

A OAB considerou o projeto inconstitucional, lembrando que “a Câmara não pode proibir que pessoas doem a outras pessoas — seja alimentos, bens ou afetos”.

Mas em Porto Alegre, o texto ressurge com outro uniforme e o mesmo veneno. O projeto da Comandante Nádia se apresenta como política pública, mas age como instrumento de controle social.

Em vez de combater a fome, combate a empatia.

Em vez de facilitar a ajuda, cria barreiras, formulários e multas.

É o Estado impondo carimbo à compaixão.

A própria vereadora diz que o objetivo é “ver onde as pessoas estão precisando de comida”.
Mas a ironia é que o projeto — e a mentalidade que o inspira — torna o poder público cego diante do óbvio: há gente com fome, hoje, agora, a poucos metros de onde o projeto será votado.

Como a naja, a proposta parece calma, racional, “técnica”. Mas o perigo está no veneno.
Seu golpe é rápido, preciso e paralisante. No caso, causa cegueira moral — aquela que impede de enxergar o sofrimento humano — e paralisia política, que impede de agir com compaixão.

É o veneno da burocracia matando a solidariedade antes que ela chegue ao prato de quem precisa. E como já alertava Carolina Maria de Jesus, “quem inventou a fome são os que comem”. Na capital gaúcha, parece que também querem inventar a proibição de matar a fome.

Que em Gravataí, Cachoeirinha, Canoas e outros municípios da região, vereadores não sejam picados pelo absurdo de discutir crachás, licenças e horários, enquanto a fome come o que resta de humanidade em nós.

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