coluna do fernando

O Brasil e a tradição democrática

Ilustração retirada da revista Caros Amigos

Ao contrário do que muita gente imagina, a democracia não é exatamente algo novo no Brasil, posterior ao final da (última) ditadura. No período colonial, as instituições lusitanas do Antigo Regime, o Clero e a Nobreza, tinham muito pouco poder. Assim, uma antiga tradição portuguesa, as câmaras municipais, passaram a ter uma influência muito maior do que tinham na metrópole. Essas câmaras faziam o papel de um governo local (o único que de fato importava na maior parte do território) e eram eleitas por todos os homens livres, mesmo que analfabetos. Para os padrões da época, o Brasil colonial era bastante democrático (como a antiga Aldeia dos Anjos ainda era subordinada à Porto Alegre, a cidade só foi ter sua câmara no tardio ano de 1880. Ainda assim, era comum que gravataienses fossem eleitos para a câmara da capital, como o Coronel Sarmento, que dá nome a uma rua do centro da cidade).

As câmaras eram um exemplo de governo democrático, mas não liberal (assumindo a distinção entre democracia e liberalismo que explico na última coluna no Seguinte:). Com a independência, uma assembleia constituinte foi convocada por Dom Pedro I. Como ele não gostou muito do que estava sendo discutido, que poderia ter levado a uma constituição extremamente liberal para o seu gosto, ele fechou a assembleia com o exército e impôs uma constituição rascunhada por ele e seus auxiliares próximos. A Constituição de 1824 foi a mais duradoura que tivemos (enquanto a Constituição atual está fazendo 30 anos, ela durou 67 anos). Ainda que imposta de cima para baixo sobre a sociedade, esta constituição era bastante democrática para os padrões da época, mesmo que o imperador retivesse muito mais poder do que nas monarquias constitucionais europeias, como a da Inglaterra, por exemplo. Ainda que proclamasse os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, essa primeira constituição nada dizia sobre a escravidão, com a qual conviveu até a abolição de 1888.

Na época, o padrão era que o voto fosse censitário, ou seja, além de ser necessário ser homem, maior de idade e livre, era necessário ter uma renda mínima para votar, 100 mil réis anuais no caso. Essa renda, porém, era bastante baixa e, na prática, qualquer empregado ou pequeno proprietário poderia votar para as eleições parlamentares, seja nas câmaras municipais ou nas assembleias provinciais e imperial, de onde saia o primeiro-ministro, o chefe do poder executivo nos tempos monárquicos. Como não havia, até 1880, restrição ao voto de analfabetos, o Brasil foi um dos países mais democráticos de todo o mundo naquela época, com mais de 20% da população participando das eleições. Na Inglaterra, a proporção era bem menor, de menos de 5%. Enquanto, nos Estados Unidos, muitos negros só puderam votar nos anos 1960, após as campanhas pelos direitos civis, lideradas por Martin Luther King, no Brasil nunca houve nenhuma barreira formal à participação eleitoral de negros livres – tanto é que houve um presidente negro já na República Velha, Nilo Peçanha. A participação eleitoral de analfabetos acabou com a reforma de 1880, que os impediu de votarem (eles compunham, então, cerca de 80% da população). Essa restrição se manteve com a proclamação da república e só foi levantada com a atual constituição (embora, atualmente, os analfabetos sejam cerca de 7% da população).

Após alguma instabilidade inicial, a República proclamada em 1889 manteve uma tradição de eleições periódicas e direitos civis mais ou menos garantidos, pelo menos até a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Assim, durante meio século, o Brasil conviveu com governos mais ou menos autoritários até o final da ditadura militar em 1985, intercalados pelos governos democráticos do que veio a ser chamada, pejorativamente, de República Populista (os governos de Juscelino, Jânio e Jango). Durante esse período de 55 anos, o Brasil teve 4 constituições diferentes. Ainda assim, após a redemocratização, o país reencontrou mais ou menos facilmente o caminho da democracia, o que talvez se explique pelos séculos de tradição colonial de democracia nas câmaras municipais e pelos quase 70 anos de alta participação política no Império.

Collor foi eleito em 1989 e sofreu um impeachment construído sobre um amplo consenso, que abrangeu tanto a direita quanto a esquerda. Após o pequeno trauma dos anos “colloridos”, houve as eleições presidenciais de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010, todas transcorridas sem maiores incidentes, com o presidente eleito assumindo normalmente e sem maior contestação – a oposição, na maior parte das vezes, soube assumir a derrota e reconheceu a legitimidade do lado vencedor. Isso não aconteceu, porém, em 2014. Conforme Celso Rocha de Barros, em artigo na Revista Piauí, as democracias não sobrevivem quando a oposição usa todas as “balas de canhão” contra o “outro lado”, exceto em situações de amplo consenso. Em 250 anos de democracia norte-americana, houve dois processos de impeachment, um devidamente rejeitado (pois baseava-se no fato de Bill Clinton ter recebido ou não sexo oral de uma estagiária) e outro que terminou na renúncia de Nixon antes da sua conclusão. No Brasil, houve dois processos em pouco mais de duas décadas. Se o impeachment de Collor foi baseado em um consenso, o de Dilma não. Para 48% dos brasileiros, Dilma foi vítima de um golpe em 2016.

Sim, o PT pediu o impeachment de todos os presidentes desde Sarney até FHC, mas não teve poder de levar o pedido adiante. Já os tucanos, aliados ao MBL e ao PMDB, conseguiram derrubar Dilma facilmente – embora, obviamente, os próprios erros do governo e as mentiras da campanha de 2014 ajudaram a pavimentar o terreno. Se o impeachment, ou “golpe”, de 2016 traumatizou ou não a democracia brasileira vamos começar a descobrir nas eleições deste ano, de onde pode sair eleito algum candidato extremista e autoritário.

 

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