No rádio, por volta das 6h45 de hoje, Márcio ouviu a repórter apresentar dados de uma pesquisa que apontava a atual crise de Emprego do Brasil como a pior dos últimos 30 anos. E entre uma mordida e outra no pão cacetinho, soube que além dos atuais 14 milhões de desempregados, outros 10 a 12 milhões de brasileiros seguem em postos de trabalho extremamente precarizados. Bebeu o último gole de café puro, agora quase morno e levantou-se da mesa. Logo mais, nessa segunda-feira, participaria da nova etapa do seu processo seletivo.
O Márcio é desses caras bastante esforçados, com poucos amigos e muitos sonhos. Quem o conhece, sempre fala bem dele, só não compreende como ainda “não pegou numa boa empresa”, ou, como “não se arranjou na vida”. Cursou Administração, fez um ou dois cursos de especialização e segue na luta. “Não está fácil pra ninguém”, dizem.
Mas hoje vai! Chegou na empresa cumprimentando o porteiro como se o conhecesse há tempos. Essa é a terceira etapa e já está ambientado, tanto que foi logo ao departamento de recursos humanos depois de comentar do futebol com pessoal da limpeza. Com o aspirador na mão, o senhor que limpava o corredor disse confiante que torcia por ele.
Passou um, passaram quatro e chegou a vez dele. A entrevista agora era com o gerente da área de contratação que o cumprimentou destacando os bons resultados das testagens iniciais. E ao encaminhar o final daquela etapa, fez perguntas que achava cruciais:
– Diga-me um defeito seu.
– Sou muito perfeccionista – disse Márcio fazendo uma ruga vertical na testa.
– Claro, mas conte-me algo prático do seu dia-a-dia que considere um defeito.
– Hum! Sou obsessivo com horário. Pontual sempre!
O entrevistador insistiu diante daquela suposta imagem de Candidato Perfeito:
– Então não falemos em defeitos, mas me diga um ponto de melhoria. Algo que gostaria de mudar em você.
Ele pensou um pouco e respondeu:
– Eu coloco os interesses da empresa ou das atividades às quais me dedico acima de interesses pessoais.
Aos 29 anos, um pouco acima do peso, Márcio tem facilidade de sair-se bem em entrevistas de emprego. Mas, no fim, de alguma forma, se auto-sabota. Falta às agendas, falha em dinâmicas de grupo ou simplesmente desiste. Nesta empresa, foi diferente. Tudo correu bem e quase com surpresa recebeu a notícia da contratação.
Finalmente chegou à sala onde assinaria o contrato, colocado diante dele com uma caneta preta já aberta, pronta para ser usada. Ele passou rápido os olhos pelo texto, pegou a esferográfica que parecia ter um peso bem maior que o normal para aquele tipo de material. Encostou a ponta de carboneto de tungstênio no papel, bem no início da linha para sua assinatura. Exitou! Tentou mais uma vez e nada. Voltou, os olhos para o dados pessoais para encontrar resposta. Via um CPF, um RG, um endereço, até um nome, mas nada parecia seu. Tantas foram as entrevistas, os textos que decorou sobre Missão, Princípios, Valores e Propósitos de empresas, que Márcio esqueceu dos seus próprios. Esqueceu-se de quem era.
Pediu uns minutos, foi ao banheiro e mesmo o espelho não apresentou ideia melhor. O reflexo era uma grande interrogação. Não ele.
– Você está bem? – perguntou um funcionário que o encontrou de volta ao corredor.
– Claro que não. Serei contratado! – gritou, saindo em seguida.
Soube-se que noutra oportunidade, o dono de uma recém aberta fábrica de móveis decidiu pagar o exorbitante valor da pretenção salarial de Márcio. Mas agora, preparado, treinou uma rúbrica simples, de duas letras e um traço, para ser usada em momentos de emergência.