“Ao lado desta manhã, a outra vez. A primeira noite que não viste. A noite sem lua, só a noite negra a encher-nos todos. Sólida, a noite grande enorme, a noite sem mais que o seu e o nosso negro. Espessa, a noite a travar o carro. E a chuva grossa, e cortinas de chuva, e correntes de água limpa nos vidros foscos do carro.”
(Morreste-me, de José Luís Peixoto)
A morte e o luto fizeram parte da nossa semana. Foi-se uma equipe inteira de futebol, foram-se jornalistas, foram-se trabalhadores da aviação. Foi-se Ferreira Gullar, grande poeta. Com eles, foram-se o futebol, a arte, os sonhos. Todos eles deixaram de ver a noite, a chuva, o sol; foram-se e não os vemos mais.
Em palestra da qual participei no ano passado, o escritor português José Luís Peixoto e o psicanalista César Bastos debateram sobre o luto. Na obra “Morreste-me”, o autor elabora artisticamente o luto pela morte de seu pai. Cada linha toca-nos profundamente, porque nos identificamos – ou por termos passado pela situação ou por temê-la – com a dor e com a emoção causadas pela ausência.
Uma tragédia de grandes dimensões como a que ocorreu com a Chapecoense foi capaz de causar uma comoção também de grandes dimensões. Um país inteiro chorou. A solidariedade de tantos outros países chegou até o Brasil. Todos nos reconhecemos na única certeza que nos iguala como seres humanos: a morte.
Não há consolo, nem explicação. Mas existe a arte, que pode, de várias formas, ajudar a elaborar o luto, como refletiu o psicanalista no debate que mencionei.
Numa semana marcada pela tragédia e por despedidas, talvez seja até simbólico o fato de o último a ir-se ter sido um poeta.
– A arte existe porque a vida não basta – disse Ferreira Gullar.
O escritor, engajado politicamente, artista múltiplo, poeta, tradutor, dramaturgo, deixou um grande legado, uma vasta obra. E também gostava de futebol.
Em homenagem aos que se foram, aos amantes do esporte e da arte, deixo um poema de Gullar, sobre o esporte que tanto nos comoveu.
O GOL
(Ferreira Gullar, 2006)
A esfera desce
do espaço
veloz
ele a apara
no peito
e a pára
no ar
depois
com o joelho
a dispõe a meia altura
onde
iluminada
a esfera
espera
o chute que
num relâmpago
a dispara
na direção
do nosso
coração.
#adeusgullar
#forçachape