RAFAEL MARTINELLI

O cristão-cidadão-de-bem assanhado com a trepanação e a precificação da morte de Lula

Lula, nesta sexta-feira, andando pelo corredor do hospital com o neurocirurgião Marcos Stavale

A falta de surpresa com que vi gente de Gravataí postando memes e comentários desejando a morte de Lula talvez seja o principal sintoma destes tempos odientos.

Muitos, conforme se navega em suas redes sociais, daquele perfil cristão-cidadão-de-bem que invariavelmente testemunhamos servir de complemento para violências e taradices diárias que aparecem nas notícias policiais.

Talvez, vai saber, assanhados pelo primeiro procedimento do presidente ter o nome técnico de “trepanação”.

Teve até comunicador travestindo-se – mais uma vez – de delinqüente moral, ao supostamente usar do humor, publicamente, não em resenha entre amigos, para alimentar maus sentimentos.

Porém, chamou-me atenção principalmente a precificação da morte do presidente pelos ‘Mercados’. Noticiou-se nova intervenção médica em Lula, o dólar caiu. Associo-me à análise do jornalista Reinaldo Azevedo, em seu artigo Embolização de Lula levou à queda do dólar? ‘Uzmercáduz’ e ataque dos cães – publicado um dia antes de pesquisa mostrar que, se a eleição de 2026 fosse hoje, Lula venceria qualquer adversário com folga (inclusive o inelegível Jair Bolsonaro, por 51% a 35%); e da alta do presidente neste domingo.

Sigamos no texto.

Há muito tempo estou atento a um, digamos, mau espírito que toma conta de setores de alguns aparelhos da sociedade que já chegaram a ter uma função civilizatória. A imprensa está entre eles. Há umbrais que não podem ser atravessados, ou toda disputa terá de ser travada necessariamente na lama. Pensei em Lula no hospital e direi por que me lembrei do Salmo 22 e do ataque dos cães.

O dólar despencou ontem. Como não cansam de dizer os detratores, “você — no caso, eu — não entende nada de economia”. Muitos dos que “entendem”, se arvoram em professores do Altíssimo e conhecem o mundo desde o fim erraram mais do que eu. Como não sou do tipo que acredita nas virtudes curativas da ignorância, pode ser que não lhes tenham faltado nem informação nem inteligência. Talvez seja um problema de escolhas — também as ideológicas — e de caráter.

Por que isso? A lógica elementar me dizia — e que bom que afirmei — que era fatal que o Copom elevasse a Selic em um ponto percentual. Por quê? Eles têm indicadores e suas teses de hiato de produto, além dos 3% como centro da meta da inflação etc. — sobram dedos em uma das mãos os anos em que se fez esse número… É claro que não se vai mais debater essa doxa, não é? Mas não iria subir um ponto por isso, não.

O jogo foi escancarado por esse troço a que chamam “uzmercadáduz”. Disseram: “Um Banco Central com maioria de pessoas indicadas por Lula não é de confiança; provem o contrário”. O dólar a mais de R$ 6 não tinha droga nenhuma a ver com pacote supostamente frouxo de gastos ou trajetória da dívida. Que patacoada! É que o rabo tinha de balançar o cachorro. E balançou. O Copom fez uma reunião que valeu por três: um ponto agora e também nas duas seguintes. E se a inflação não voltar aos 3%? Como já sou meio antigo, lembrei do filme “Queimada”, de Gillo Pontecorvo. Metam fogo em tudo. O importante é ter convicção e vencer o adversário. O recado: o BC segue sendo “de confiança”.

Sei lá se houve vazamento ou não. Até acho que não. Vazamento do quê? Do óbvio? O “ignorante em economia”, mas não em lógica acertou, não é? O fato é que o dólar despencou a partir de uma determinada hora do dia. Bem, a tarefa é ouvir “uzmercáduz”.

E vivi o bastante para ver esses gloriosos pensadores — segundo a Quaest, 80% votariam no golpista Bolsonaro contra Lula, e 65% poderiam escolher Pablo Marçal para evitar os “horrores” do lulismo. A explicação tinha desassombro moral de que essa gente é capaz: é que veio a notícia de que Lula seria submetido a uma embolização — procedimento bem menos arriscado do que avalia essa canalha — e, bem, o resto estava compreendido. Vamos tratar as coisas pelo nome? Apostaram na morte de Lula. Não ousariam dizer tanto porque não se querem pessoas tão horríveis assim. Podem-se edulcorar as prefigurações: “Para eles, a reeleição de Lula ficou agora mais distante”. É mesmo? Por quê?

Houve até alguns gênios que especularam — e é impressionante que essa gente não tenha vergonha de dar entrevista — que, com Lula fora de combate, ficaria mais fácil negociar o pacote fiscal, seja lá o que isso signifique. A propósito: quem está fazendo jogo duro para aprovar os textos é o presidente ou são os setores do Congresso que se articularam como organização criminosa e fazem questão de privatizar o Orçamento, ao arrepio de medidas básicas de transparência?

Alguns “doutores” que andam a falar por aí alimentam esses “hooligans” da civilidade com sua conversa supostamente técnica, mas sempre a prever o apocalipse, como se a economia brasileira fosse apenas a expressão do horror. A verdade é que se atravessou a linha e se noticiou, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que esses tais “mercáduz” não estavam pondo preço na viabilidade disso e daquilo. Essa gente houve por bem precificar a vida do presidente. Não há como essa gente fazer um bom país.

Pronto! O Copom deu aos canibais um copo de sangue, para citar personagem da Revolução Francesa, e prometeu mais dois. O que vai acontecer com o dólar? Sei lá, não é? Que alguém leia para o presidente um trecho do Salmo 22, citado no filme “Ataque dos Cães”, de Jane Campion: “Tu, porém, Senhor, não fiques distante!/ Ó minha força, vem logo em meu socorro!/Livra-me da espada,/ livra a minha vida do ataque dos cães.”

Daqui a pouco a Quaest divulga uma pesquisa sobre a eleição de 2026. Ontem, conhecemos os números da avaliação sobre o governo e o desempenho pessoal do presidente. Aprovam seu trabalho 52% e o reprovam 47%. Têm uma avaliação positiva da gestão 33% dos entrevistados. A negativa é de 31%, e a regular, de 34%.

Não quero deixar chateadinhos os anjos da morte, mas isso significa que o petista, hoje, é franco favorito para a eleição de 2026 e se elegeria com mais facilidade do que em 2022. Mas, como se sabe, a disputa não é hoje.

Afirmei ontem que Lula tem uma aprovação muito superior aos que votaram nele tanto no primeiro como no segundo turnos de 2020. Como assim? Simples: os 52% da pesquisa são um percentual haurido de uma amostra que representa o total do eleitorado — na disputa presidencial passada, eram 156.453.354.

No primeiro turno, o agora presidente obteve 57.259.504 votos na primeira jornada — 36,59% do total — e 60.345.999 na segunda: 38,57%.

Sabem o que isso significa? Que Lula ganhou 13,43 pontos percentuais junto ao eleitorado que não o escolheu no segundo turno e 15,41 junto àquele que não votou nele no primeiro.

O presidente é atendido por alguns dos melhores médicos do mundo nas suas respectivas especialidades. Um salmozinho, presidente, contra o ataque dos cães também ajuda. Vamos ver o que diz a pesquisa eleitoral.

Dado o que vai acima, ele venceria com mais facilidade hoje do que antes. Ainda que a avaliação do governo e a sua própria já tenham sido mais robustas, os números dizem que o presidente ganhou a adesão de milhões que não votaram nele na disputa passada.

O que fará essa gente pia que só pensa no bem da humanidade? Especular outra vez?

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