Para a filósofa holandesa Joke Hermsen, além da dor e do medo de estar só, o isolamento social pode ser um momento criativo e traz novas possibilidades de nos conectarmos com nós mesmos e com os outros. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País
E, de repente, iniciamos um longo retiro. Fechamos às nossas costas a porta que dá para a rua e carregamos as sacolas de compras pelas escadas, enchemos a geladeira de comida e ficamos em casa muitas semanas seguidas, separados de nossos amigos, companheiros e familiares. Não foi um retiro escolhido voluntariamente por nós, como longas férias de meditação em algum complexo “zen” de luxo. Nós nos limitamos a obedecer à firme exigência de nossos Governos, que estavam tentando manter a pandemia sob controle.
Enquanto esperávamos, descobrimos uma forma de solidão nova e ambivalente. Por um lado, essa solidão se assemelha a um isolamento forçado imposto por um poder invisível, o vírus, que nos atemoriza e nos faz sentir inseguros em relação à nossa vida, porque não sabemos quanto tempo durará nem como vencer seus perigos. Isso nos assusta, nos preocupa, nos impede de dormir e, o pior de tudo, poderia transformar nossa natureza melancólica em um estado depressivo crônico.
Porque somos seres melancólicos que em algum momento de nossa infância tomamos consciência da passagem do tempo e, com isso, da perda e da transitoriedade. Essa consciência pesa sobre nossos ombros e, ao longo dos anos, aprofunda nossa melancolia. Se muitos medos e inseguranças pairam sobre nós, nossa melancolia costuma se tornar tão escura como a “bile” grega que lhe dá nome: melan-chole, profunda e abatida. No entanto, por sorte, também sabemos como lidar com essa melancolia e “iluminá-la” com a música, por exemplo, ou com histórias, ou com uma expressão de amor. Em outras palavras, temos de torná-la “criativa” a fim de traduzi-la em “tristeza com um sorriso”, como disse Calvino, e não em depressão.
Nos últimos meses, porém, enfrentamos enormes perdas e cenários aterrorizantes. Tem sido extremamente difícil encontrar alguma esperança. Portanto, existe o perigo de que grande parte da população fique deprimida, o que é um problema de saúde muito grave, sobretudo se combinado com a solidão, como demonstraram pesquisadores famosos como Trudy Dehue, da Holanda, e Stephen. Houghton, dos Estados Unidos. Como consequência, não temos escolha a não ser continuar a buscar novas fontes de esperança e inspiração.
A boa notícia é que no próprio isoladamente, ou no que costumamos chamar de solidão, há alguma esperança. A solidão é um estado em que uma pessoa pode centrar sua atenção no diálogo interior, como Hannah Arendt explicou em ‘A Vida do Espírito’ (1973). Mesmo quando estamos “sós com nós mesmos”, somos seres dialéticos porque podemos falar sozinhos, podemos pensar e refletir sobre nossas próprias ações. Somos “dois em um”, ou, nas palavras de Arendt, “todo pensamento, estritamente falando, é elaborado em solidão e é um diálogo entre mim e eu mesmo”. Se formos capazes de nos concentrarmos nesse diálogo interior, não só descobriremos as possibilidades desse frutífero aspecto da solidão para nós mesmos, como também encontraremos novas conexões com os outros: “Esse diálogo de dois em um não perde o contato com o mundo de meus semelhantes porque eles estão representados no eu com o qual mantenho o diálogo do pensamento”.
Se o isolamento expressa a dor e o medo de estar (obrigado a estar) só, a solidão expressa a “glória de estar só”, justamente porque revela novas possibilidades de nos conectarmos com nós mesmos e com os outros. Em consequência, o desafio diante de nós é transformar nosso isolamento em uma solidão compartilhada. Como? Pensando, sonhando, lendo, escrevendo e apresentando nossos pensamentos aos demais, como eu lhes estou apresentando os meus. Este intercâmbio é a única coisa que pode proporcionar um contrapeso suficiente à nossa melancolia e nos impedir de cair em depressão. Em todo o mundo, compartilhamos os mesmos medos e as mesmas ameaças, mas também a mesma esperança: de ser capazes de recomeçar depois do coronavírus, e nos comportar e agir de uma maneira muito mais responsável e solidária.
Eu me lembro de estar em minha sacada em Amsterdã, olhando um céu de um azul pungente sobre as casas. Nunca havia sentido um contraste tão nítido entre esta primavera vital e florescente e mais uma série de estatísticas trágicas apresentadas nos noticiários. Lá estávamos nós, em pleno despontar de vida reluzente, cercados pelo anúncio de tantas mortes. Ficamos lá dentro e esperamos, às vezes nos perguntando o que estávamos esperando: o fim do confinamento? A próxima crise? Ou talvez a oportunidade de mudar?