Na última sexta-feira, dia 12, a crítica literária perdeu um de seus principais nomes: o escritor Antônio Cândido, que faleceu aos 98 anos.
Em seus vários escritos (expressão essa que intitula um de seus livros), Cândido apresentou o que considero uma das reflexões mais relevantes nos estudos literários: o texto "O Direito à Literatura". Nele, o autor aponta a Literatura como fundamental para a humanização do indivíduo e para o conhecimento do sistema social no qual ele se insere.
“A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.” (Antônio Cândido in “O Direito à Literatura”)
O texto responde, em muitos aspectos, àquela pergunta repetidamente feita: para que mesmo é preciso estudar literatura? Qual a necessidade disso?
Nestes tempos em que falta emprego, saúde e paciência, poderíamos dizer: nenhuma necessidade.
Mas Cândido defendeu que, mais do que necessidade, é um direito. Nós não ficamos o tempo todo agarrados à realidade. O ser humano precisa descolar-se dela em alguns momentos, como acontece quando sonhamos, por exemplo. Quando estamos acordados, a Literatura, o cinema, a novela – as artes, em geral – cumprem esse papel também redentor.
É preciso trabalho e é preciso sonho. Existimos no encontro dessas duas dimensões.
E porque acredito na Literatura como direito também fundamental, compartilho com vocês um lindo poema de Manoel de Barros, sobre a matéria da poesia.
Matéria de poesia
(Manoel de Barros, in “Matéria de poesia”)
I.
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia.
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia.
Terreno de 10 x 20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia
As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia
(…)
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros
serve para poesia
(…)
As coisas jogadas fora
têm grande importância
– como um homem jogado fora
(…)
As coisas sem importância são bens de poesia
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.