RAFAEL MARTINELLI

O (duro) recado que as cheias nos trazem

Associo-me ao imperdível artigo de Iporã Possantti, doutorando no PPG Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental (IPH/Ufrgs), e Guilherme Marques, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Ufrgs, publicado pelo Grupo de pesquisa em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos (Gespla) da universidade.

Siga o texto.

O inverno de 2023, um ano de El Niño pronunciado, trouxe consigo chuvas intensas que desencadearam diversas catástrofes naturais no Rio Grande do Sul. A última delas ocorreu no dia 4 de Setembro, resultando em 27 vítimas fatais confirmadas até o momento. Com isso, a natureza nos traz um duro recado: não podemos mais ignorar a maneira como lidamos com o risco e a incerteza climática e hidrológica para criar soluções que vão proteger recursos materiais e, acima de tudo, vidas humanas.


A incerteza da natureza


No caso do evento ocorrido em 4 de Setembro, os danos causados foram mais acentuados na área da escarpa da Serra Geral, uma paisagem com vales de rios profundamente encaixados na topografia, como o vale do Rio Taquari-Antas. A combinação de montanhas íngremes, vales profundos e clima úmido é sabidamente perigosa, resultando em respostas dos rios muito rápidas aos eventos de chuva. 

Mesmo assim, o escoamento dos rios surpreendeu pela sua magnitude extrema. Por exemplo, a barragem Castro Alves verteu uma vazão que excedeu a recorrência estimada para 10 mil anos, conforme reportado pela operação da barragem. Em uma cena impactante, uma imponente ponte histórica foi completamente varrida pelas águas do Rio das Antas. Esse valor de 10 mil anos significa uma probabilidade muito baixa (de 0.01%) de esse evento ocorrer em um ano qualquer. Ou seja, se estima que esse tipo de evento ocorreria em média a cada 10 mil anos. Só que esse já é o terceiro evento climático extremo do ano. Onde está o problema?

A estimativa desse risco não está tecnicamente errada. O problema é que ela se baseia na suposição de que as informações que temos sobre o passado são suficientes para prever o futuro. Essa suposição está profundamente arraigada pela noção de ordem natural. Mas em um mundo dinâmico, essa suposição só trará resultados desastrosos, especialmente diante das atividades que usam de recursos naturais (ex: água e solo), modificam o meio (ex: estradas e barragens) ou promovem a ocupação do espaço (ex: uso de planícies de inundação). A incerteza imposta pelas mudanças climáticas nos obriga a abandonar essa suposição.


Mas o que é incerteza?


A incerteza ocorre quando não podemos estabelecer com exatidão um resultado, um fato, um enunciado. Ela se manifesta tanto pela falta de informações precisas e confiáveis, quanto pelo desconhecimento dos processos envolvidos. Ou seja, a incerteza apresenta outras facetas que precisamos aprender a reconhecer para além dos dados que temos acesso.

Em uma situação típica, como o projeto de uma ponte sobre um rio, não se pode prever com exatidão a altura máxima que a água poderá alcançar. Essa incerteza traz consigo um risco quando decisões importantes, como a construção da ponte, são tomadas. Para lidar com essa incerteza e minimizar esse risco, as equipes de engenharia buscam obter informações mais abrangentes e confiáveis, aprofundam seu conhecimento sobre os processos envolvidos e implementam medidas de segurança adicionais.

Entretanto, aquilo que é desconhecido não pode ser quantificado como risco. No contexto das chuvas e dos rios, ainda não compreendemos completamente todos os processos, especialmente aqueles relacionados à circulação da água na atmosfera. A resposta hidrológica dos solos também é fortemente condicionada pelos eventos anteriores de chuva e tempo seco, e isso acontece de uma forma não intuitiva. Para completar, frequentemente enfrentamos a carência de dados confiáveis sobre esses processos. Reconhecer isso impõe a necessidade de um novo paradigma para a engenharia moderna e para a tomada de decisões relacionadas ao uso da água e das áreas sujeitas a inundações.


O que fazer então?


A nova abordagem, além de reconhecer a insuficiência das informações disponíveis, deve pensar soluções em termos de robustez. Esse conceito consiste na capacidade de um sistema (ex: uma cidade) permanecer inabalado diante das grandes perturbações climáticas e hidrológicas. A robustez se desenvolve não somente ao se resistir aos efeitos negativos causados pelos desastres, mas principalmente ao se evitar a exposição ao perigo. Resistir implica sustentar um sistema eficiente de redução de danos que atue antes, durante e após a crise. Evitar o perigo, por outro lado, é muito mais difícil, pois envolve tanto remover a exposição já consolidada quanto permanecer vigilante para que novas exposições não sejam criadas, mesmo que isso custe caro.

Na prática, devem ser pensadas opções que ofereçam maior flexibilidade e escolhas para a população. Isso significa afastar-se das abordagens convencionais, que se concentram em estruturas rígidas, como diques e barragens. Essas estruturas são projetadas com base em riscos quantificáveis, o que limita sua eficácia a longo prazo, uma vez que não podemos prever todas as incertezas futuras. Em contrapartida, abordagens mais adaptáveis incluem medidas como a delimitação de zonas de inundação, ajustes nos Planos Diretores para reduzir a vulnerabilidade das edificações e das pessoas em áreas inundáveis, bem como a implementação de sistemas de alerta hidrológico para melhorar a capacidade de resposta da sociedade a eventos climáticos extremos.

Em uma linha auxiliar, mas imprescindível, é importante adotar métodos avançados de planejamento e gestão que combinem análise de decisão, planejamento baseado em cenários e modelagem exploratória. Esses métodos utilizam simulações computadorizadas que permitem testar diferentes estratégias em uma ampla gama de cenários possíveis para o futuro. Isso ajuda na identificação de cenários críticos para a formulação de políticas e estratégias que sejam robustas. Por exemplo, o que aconteceria se todas as piores chuvas já observadas na série histórica ocorressem ao mesmo tempo no vale do Rio Taquari, após um inverno excepcionalmente úmido? Talvez nessa avaliação de “pior cenário possível” nos mostraria exatamente o que estamos presenciando em 2023.

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REFERÊNCIAS

Herman, J. D., Reed, P. M., Zeff, H. B., & Characklis, G. W. (2015). How should robustness be defined for water systems planning under change?. Journal of Water Resources Planning and Management141(10), 04015012.

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