3º Neurônio | música

O fenômeno Anitta: a música ainda importa?

Anitta, nas gravações do novo clipe Vai, Malandra

Quando escrevi, em julho, o texto Pablo Vittar e Chico Buarque: uma parábola, confesso que não esperava uma repercussão (ainda que restrita a determinados meios, não foi uma viralização e acredito que nem teria tamanho pra gerar algo dessa dimensão) tão forte sobre a publicação. Houve quem realmente considerasse que ali estava uma comparação musical sobre as obras recém-lançadas por ambos. Escrevi:

O arranjo de “Tua Cantiga” é belíssimo, harmonia no piano, uma cortina sofisticada para a voz minimalista de Chico. Já Pabllo Vittar constrói suas falas sobre um breguíssimo sintetizador, eletrônico, parecendo um teclado de tecnobrega de churrascaria.

Ou seja, havia ali um juízo de valor essencialmente musical. Há algum tempo, estabeleci que, para mim, a música é um hobby. Não sou um especialista. Sou um consumidor ávido de música, algo que me acompanha. Um fã suficientemente lúcido para ter um certo conhecimento sobre os elementos que tornam uma canção boa ou ruim. Alguém que tem em sua origem o rock como gênero preferencial, mas que aprendeu a admirar e gostar (e entender) de MPB e que tem uma certa noção da trajetória histórica dos ritmos musicais. Quer dizer, eu sei quem é o Chico Buarque e sei o que representa para os tempos atuais o Pabllo Vittar. Com isso, também escrevi: “ a música de Pabllo Vittar é muito mais relevante do que este lançamento de Chico para os tempos atuais”. Ali, entendia que o discurso envolvido em Pabllo era mais significativo que o imposto sobre a música de Chico. Afinal, é um tempo onde se consome muito mais o discurso do que a música. Aliás, música ainda importa?

O ano de 2017 fecha com o mais novo lançamento de Anitta. “Vai Malandra”, um pop com elementos do funk carioca e todos os estereótipos que o movimento ganhou de uns tempos pra cá. A rigor, o funk carioca virou um subproduto do subproduto gangsta dos anos 1990. Corpões e ostentações predominam num videoclipe onde se mistura o clima da favela com a sutil arrogância dos “malandros”. É um clipe que poderia perfeitamente ser do Nelly, da Missy Elliott ou do Snoop Dogg nos anos 1990. É o mais puro sentido da globalização transposto ao local, ao brasileirismo, ao gosto nacional. A mensagem final, no entanto, é bem clara: há ali um pop brasileiro com todo seu discurso próprio, vindo da periferia, com uma apropriação bem feita dos guetos estadunidenses, incorporado ao gosto nacional com todas as suas malícias e particularidades. É sensual, malandro e veranil. É uma mulher, brasileira, autêntica, pisando na cara da sociedade e mostrando seu poder visual, discursivo e, em último grau, musical.

Assim como Pabllo Vittar apresenta o discurso inteiro relacionado às questões de gênero, Anitta ilustra uma camada social que representa hoje o grande consumidor brasileiro. Em um outro pólo, o chamado feminejo, de Simone e Simária, Maiara e Maraísa, Marília Mendonça e Naiara Azevedo representa a afirmação da mulher em um gênero predominantemente masculino, que é o sertanejo. Estes três eixos contribuem para sistematizar o novo mercado musical brasileiro, onde o discurso que se aproxima do âmbito social prepondera sobre a música em si. É como se os movimentos sociais se apropriassem dos movimentos musicais para dar o seu recado, tomar conta das paradas, arrebatar as elites e fazer todo mundo dançar o seu som: da favela ao galpão, da festa da socialite à danceteria alternativa, do encontro de final de ano ao casamento da estrela. Todos ali dançam da mesma forma, rebolando até o chão ou requebrando na sofrência. É possível dizer que este não é o único momento em que as elites se aproximam da periferia. O Carnaval, o futebol e a praia, por exemplo, são outras zonas de “conflito” em que a celebração estreita as distâncias sociais. Embora ainda não assumida integralmente pelos intelectuais, esta onda já teve a chancela do Caetano (então pode!) e de outros pensadores brasileiros. Talvez, muito mais impulsionados pelo que o discurso representa socialmente do que musicalmente. Mesmo assim, é admirável ver Anitta conectada com os gringos de dentro da favela, Marília Mendonça exportando música direto de um rodeio repleto de homens ou Pabllo Vittar sendo dançado efusivamente em ambiente hétero.

Sobre o funk carioca, notei um desconhecimento ainda maior nesta semana nas redes sociais. Lulu Santos postou o seguinte no Twitter: “É tanta bunda, polpa, bum bum granada e tabaca que a impressão que dá é que a MPB regrediu pra fase anal”. Os mais jovens talvez não saibam, mas Lulu, em 1995, lançou um disco chamado “Eu e Memê, Memê e Eu” só de remixes. Uma das faixas mais conhecidas da carreira do cantor, “Toda Forma de Amor”, é aberta por um funk tipicamente carioca. A coleção Rap Brasil (especialmente os volumes 1 e 2) tem, em meu julgamento, uma importância especial para designar o que se consome atualmente na música pop brasileira. Talvez algum dia reconheceremos o valor de um disco que tem o Rap da Felicidade (“Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”) e Rap da Diferença (“Qual a diferença entre o charm e o funk?/ Um andar bonito e o outro elegante”), dois clássicos do ritmo que têm, em seu legado, a difusão da batida, da autenticidade da favela numa época em que tudo o que os funkeiros queriam era paz, dança e diversão e não assumir o lugar dos privilegiados, embora entenda um certo grau de empoderamento nesse discurso. Empoderamento que ronda o discurso das meninas do sertanejo, do Pabllo Vittar e dos novos funkeiros, aquela coisa de finalmente ver as camadas menos privilegiadas tomando de assalto um lugar que sempre foi de outros e que eles nem de longe conseguiam assistir. Pois bem, a vez é deles e isso precisa ser mostrado a todos.

A única coisa que talvez fique por baixo dos panos é que este movimento teve desbravadores e negligenciar a importância de uma Roberta Miranda ou do Lulu, defenestrado por gente que não faz ideia da sua importância para o próprio funk —  ainda bem que o Buchecha se manifestou e colocou as coisas nos lugares é não saber a origem das coisas.

O tweet de Lulu, embora com discurso preconceituoso, nada mais é do que um recado dado ao que a indústria musical produz hoje em dia: muita imagem, pouco som. Muita siginficação social, pouca significação musical. Muita mensagem, pouco refrão. A música sofreu o sacrifício do empobrecimento para autentificar, de qualquer forma, a gradativa importância das questões sociais. O consumo de “Vai Malandra” é muito mais discursivo do que musical.

Passado o escopo social, voltemos à música. Eu não gostei, achei horrível, chata, mas isso não importa. Vocês também não gostaram, mas isso também não importa. A música deixou de importar. Quem hoje em dia se importa com música? Ela deixou de ser uma identificação. Pessoas usam camisa dos Ramones como se fosse da Tommy Hilfiger. Pessoas se fantasiam de Kiss como se fossem o Bozo. Surfistas fazem o sinal do heavy metal. Pagodeiros vão a festas rave. Punks sambam. Ludmilla e Slayer convivem na mesma playlist. Vanguardistas choram na sofrência. Foi-se o tempo das tribos, onde a música determinava guetos, nichos e comportamentos. Acabou a estratificação por gosto. É uma pós-modernidade líquida, onde a gente ouve música por osmose, determinada pelos grupos sociais e, principalmente, ideológicos a quem tomamos partido. A qualidade musical importa menos ainda. O importante é sentir-se parte de algo, por sentimento de pertencimento ou pelo falso ecletismo (e aí a dinâmica de “estar por dentro das coisas”), pela lógica do consumo (ouvir a música X porque é a música que empurram pra nós, algo que não é tão novo assim, vide a formação histórica das paradas de sucesso) ou por um novo movimento, que é a música por identificação ideológica. Ouvir Anitta talvez entre nesse último ponto, que é o que faz a cabeça do jovem antenado: escuta-se mais por aquilo que ela representa (o ideal do “mulherão da porra”) do que por aquilo que ela canta (vamos combinar que a letra de “Vai Malandra” não é necessariamente um primor poético).

“Vai Malandra” vai estourar e você vai cantar sem vergonha de ser feliz. Por um lado, derrubar estas barreiras diminui o preconceito. Por outro, entra um lado conservador que insisto em manifestar (ainda não evoluí tanto assim). Para mim, a música importa. Diminuí-la para abrir caminho para situações que reforçam teses é mais um exemplo de como as pessoas estão reduzindo seu senso crítico, seus gostos pessoais e, por fim, sua visão sobre a arte. Nesse dilema, confesso não ter condições para concluir qualquer coisa que não seja somente não escutar a canção, recomendação bastante dada a mim quando resolvo criticar alguma coisa. “Não gosta, não escuta, deixa os outros ouvirem”. Mas, preciso provocar: você gostou da música porque ela é boa, porque a Anitta é um “mulherão da porra” ou porque tá todo mundo ouvindo? Se você gostou, parabéns, a música ainda importa. Se você afirma gostar pelo que Anitta representa ou porque “tá todo mundo ouvindo”, parabéns também: você está pronto para dançar, falar bem, admirar e esquecer. Fazer um post no twitter, um textão no Facebook, dançar na balada e voltar para suas atividades. A música, pra você, não é um fim, é só um pretexto, seja lá para qual propósito: reforçar uma tese, manifestar uma identificação ou somente curtir com a galera. Nada mais conectado com a realidade. Nada mais antigo esse lance de dizer que uma música é boa ou ruim. Cada um curte a sua, pelo motivo que for, do jeito que quiser. Senso crítico é démodé. Apreciar uma música por aquilo que ela realmente é, pelo visto, também.

 

Carlos Guimarães é jornalista; comentarista esportivo da Rádio Guaíba),mestrando em Comunicação e Informação e especializado em Jornalismo Esportivo.

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Receba nossa News

Publicidade