“Basta ligarmos nosso smartphone para acompanhar um genocídio ao vivo, 24/7, até mesmo em HD”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, traduzido por Patrícia Zimbres para o 247
Joseph Conrad uma vez disse que, antes de ter ido ao Congo, ele era um animal simples. Foi em uma daquelas terras parcialmente mapeadas pela crueldade e hipocrisia do ethos imperial que Conrad descobriu o colonialismo europeu em sua encarnação mais terrível e não-diluída, devidamente descrita em Heart of Darkness – Coração das Trevas em português – um dos grandes épicos conscientizadores da história da literatura.
Foi no Congo que Conrad, de etnia polonesa e nascido naquilo que hoje é conhecido como “Ucrânia”, então controlada pela Polônia, que só começou a escrever em inglês ao vinte e três anos, perdeu para sempre qualquer ilusão relativa à missão civilizadora de sua raça.
Joseph Conrad uma vez disse que, antes de ter ido ao Congo, ele era um animal simples. Foi em uma daquelas terras parcialmente mapeadas pela crueldade e hipocrisia do ethos imperial que Conrad descobriu o colonialismo europeu em sua encarnação mais terrível e não-diluída, devidamente descrita em Heart of Darkness – Coração das Trevas em português – um dos grandes épicos conscientizadores da história da literatura.
Foi no Congo que Conrad, de etnia polonesa e nascido naquilo que hoje é conhecido como “Ucrânia”, então controlada pela Polônia, que só começou a escrever em inglês ao vinte e três anos, perdeu para sempre qualquer ilusão relativa à missão civilizadora de sua raça.
Outros europeus eminentes de seu tempo também tiveram a experiência ininterrupta desse mesmo horror – participando no Grande Show da Atrocidade Conquistadora, ajudando a Metrópole a esmagar e saquear a África; usando o continente como pano de fundo para suas mortíferas aventuras juvenis e seus ritos de passagem, ou apenas testando seu ardor ao “salvar” as almas dos nativos.
Eles atravessaram o selvagem coração do mundo e fizeram fortuna, construíram reputação ou cumpriram penitência, apenas para voltar para casa para o doce conforto da inconsciência – quando não era despachados de volta em um caixão, é claro.
Para dominar essa variedade de povos “primitivos”, a Britannia substituiu o ferro e a espada pelo comércio. Como qualquer outra fé monoteísta, eles acreditavam que só havia uma maneira de ser, uma maneira de beber chá, uma maneira de jogar o jogo – fosse qual fosse o jogo. Tudo o mais era incivilizado, selvagem, brutal, no máximo oferecendo matérias-primas e dores de cabeça agudas.
A selva interior – Para a sensibilidade europeia, o mundo subequatorial, na verdade todo o Sul Global, era para onde o Homem Branco ia para alcançar triunfo pessoal ou para a dissolução, tornando-se de certa forma “igual” aos nativos. A literatura, a partir da era vitoriana, está repleta de heróis que partem para latitudes “exóticas”, onde as paixões – como as frutas tropicais – são maiores que na Europa, e as formas perversas de autoconhecimento podem ser vividas até a perdição.
O próprio Conrad colocou seus torturados heróis nos lugares obscuros da Terra para expiar suas sombras lado a lado às sombras do mundo, longe da “civilização” e de suas punições convencionais.
O que nos leva ao Kurtz de Coração das Trevas: ele está em uma categoria à parte porque atinge um extremo de autoconhecimento virtualmente inédito na literatura europeia, enfrentando a revelação plena da malignidade de sua missão e de sua espécie.
No Congo, Conrad perdeu a inocência. E seu personagem principal perdeu a razão.
Quando Kurtz migrou para o cinema no Apocalypse Now de Coppola, e o Camboja substituiu o Congo como o Coração das Trevas, ele estava denegrindo a imagem do Império. Então o Pentágono mandou um intelectual-guerreiro para matá-lo, o Capitão Willard. Coppola retratou o espectador passivo Willard como ainda mais insano que Kurtz: e foi assim que ele conseguiu o desmascaramento psicodélico de toda a farsa do colonialismo civilizador.
Hoje não precisamos embarcar em um barco ou em uma caravana em busca da nascente dos rios nevoentos para viver a aventura neoimperial.
Basta ligarmos nosso smartphone para acompanhar um genocídio ao vivo, 24/7, até mesmo em HD. Nosso encontro com o horror… o horror – tal como imortalizado pelas palavras de Kurtz em Coração das Trevas – pode acontecer ao fazermos a barba de manhã, praticarmos Pilates ou jantarmos com amigos.
E da mesma forma que Coppola, em Apocalypse Now, temos a liberdade para expressar um estupor moral humanista ao nos defrontarmos com uma “guerra” que é, na verdade, um massacre, e que já está perdida – em sua impossibilidade de sustentação ética.
Hoje somos todos personagens conradianos, vislumbrando fragmentos, sombras, misturados ao estupor de vivermos em um tempo cruentamente memorável. Não há a menor possibilidade de compreendermos a totalidade dos fatos – em especial quando os “fatos” são fabricados e artificialmente reproduzidos e inflados.
Somos como fantasmas, desta vez nos confrontando não com a grandeza da natureza, nem atravessando a densa e irreversível selva, mas conectados a uma urbanidade devastada, como num videogame, coautores do sofrimento incessante. O Coração das Trevas está sendo construído pela “única democracia” no Oeste Asiático em nome de “nosso valores”.
Há tantos horrores invisíveis perpetrados por trás do nevoeiro, no coração de uma selva agora replicada como uma jaula urbana. Assistindo, impotentes, à matança desenfreada de mulheres e crianças, o bombardeio de saturação de hospitais, escolas e mesquitas, como se fossemos todos passageiros em um navio bêbado atirando-se em um redemoinho, admirando a poderosa majestade de toda a cena.
E já estamos morrendo mesmo antes de vislumbrarmos a morte.
Somos os epígonos do Hollow Men, os homens ocos de T.S. Eliot. Os gritos lancinantes vindos da selva não vêm mais de um hemisfério “exótico”. A selva é aqui – rastejando para dentro de todos nós.