“A Guerra Híbrida 2.0 contra o Sul Global ainda nem começou. Estados-pêndulo, vocês foram avisados”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado no Asia Times, e traduzido por Patricia Zimbres para o 247
Os picaretas dos Estados Unidos, a Terra dos Think-Tanks, não são exatamente versados em Montaigne: “Mesmo no melhor e mais alto trono do mundo, sentamo-nos apenas sobre nossos traseiros”.
A hubris leva esses espécimes a presumir que seus traseiros flácidos se situem muito acima dos de todos os demais. O resultado é que a característica mistura de arrogância e ignorância acaba sempre desmascarando a previsibilidade de suas profecias.
A Terra dos Think-Tanks – inebriada por sua autocriada aura de poder – sempre telegrafa com antecedência o que eles irão aprontar. Foi assim com o Projeto 11 de setembro (“Precisamos de um novo Pearl Harbor”). Foi assim com o relatório RAND sobre sobrecarregar e desequilibrar a Rússia. E é assim mais uma vez com a recém-criada Guerra dos Estados Unidos contra o BRICS, tal como traçada pelo presidente do Grupo Eurásia, sediado em Nova York.
É sempre doloroso suportar a leitura dos intelectualmente rasos sonhos molhados fantasiados de “análises” da Terra dos Think-Tanks, mas, neste caso específico, os principais atores precisam ter plena consciência daquilo que os espera.
Como seria desse esperar, a totalidade dessa “análise” gira em torno da iminente e devastadora humilhação do Hegêmona e de seus vassalos: o que irá acontecer em um futuro próximo no país 404, também conhecido – por enquanto – como Ucrânia.
Brasil, Índia, Indonésia e Arábia Saudita são descritos como “os quatro grandes em-cima-do-muro” quando se trata da guerra por procuração dos Estados Unidos/OTAN contra a Rússia. É a mesma velha história do chavão “você está do nosso lado ou está contra nós”.
Mas então somos apresentados aos seis grandes vilões do Sul Global: Brasil, Índia, Indonésia, Arábia Saudita , África do Sul e Turquia.
Em mais uma remixagem crua e provinciana da expressão de efeito tratando das eleições americanas, esses países são classificados como os principais estados-pêndulo que o Hegêmona terá que seduzir, bajular, intimidar e ameaçar, a fim de assegurar seu domínio sobre a “ordem internacional baseada em regras”.
A Arábia Saudita e a África do Sul foram acrescentadas a um relatório anterior focado nos “quatro grandes em-cima-do-muro”.
O manifesto dos estados-pêndulo observa que todos eles são membros do G20, e “atuantes na geopolítica e na geoeconomia” (Não diga! Que furo de reportagem!). O que ele não diz é que três deles são membros dos BRICS (Brasil, Índia, África do Sul) e os outros três são sérios candidatos a se filiar ao BRICS+: decisões que serão aceleradas na próxima cúpula dos BRICS, a ter lugar na África do Sul, em agosto.
Fica claro, então, do que realmente trata o manifesto dos estados-pêndulo: um chamado às armas para a guerra dos Estados Unidos contra os BRICS.
Então, os BRICS não têm muito poder de fogo – O manifesto dos estados-pêndulo abriga sonhos molhados de que o near-shoring (levar a produção para mais próximo dos mercados onde os produtos serão vendidos) e o friend-shoring (levar a produção para países aliados) irão se afastar da China. Bobagem: a ordem do dia, de agora em diante, é o aumento do comércio intra-BRICS+, em especial com a expansão da prática de uso de moedas nacionais (ver Brasil-China, ou internamente à ASEAN), o primeiro passo para a generalização da desdolarização.
Os estados-pêndulo são caracterizados como “não sendo uma nova encarnação” do Movimento Não-Alinhado (MNA), ou de “outros agrupamentos dominados pelo Sul Global, como o G-77 e os BRICS”.
E por falar em bobagem exponencial. O assunto aqui é exatamente os BRICS+, que hoje possuem os instrumentos – incluindo o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o banco dos BRICS – para fazer tudo o que era impossível ao MNA durante a Guerra Fria: criar o arcabouço de um novo sistema que dispensasse o Bretton Woods e os mecanismos de coerção entrelaçada do Hegêmona.
Quanto à afirmação de que os BRICS “não têm muito poder de fogo”, ela apenas revela a ignorância cósmica da Terra dos Think-Tanks a respeito do que os BRICS vêm a ser.
A posição da Índia só é vista em termos de ela ser membro do Quad – definido como “um esforço comandado pelos Estados Unidos de contrabalançar a China”. Leia-se: conter a China.
Quanto aos estados-pêndulo “escolherem” entre os Estados Unidos e a China na questão de semicondutores, IA, tecnologia quântica, 5G e biotecnologia, não se trata de “escolha”, e sim de até que ponto eles são capazes de resistir à pressão do Hegêmona no sentido de demonizar a tecnologia chinesa.
As pressões colocadas sobre o Brasil, por exemplo, são muito mais pesadas que sobre a Arábia Saudita ou a Indonésia.
Mas, no final das contas, tudo volta à obsessão dos neocons straussianos: a Ucrânia. Os estados-pêndulo, em graus variados, são culpados de se oporem e/ou boicotarem a demência das sanções. A Turquia, por exemplo, é acusada de canalizar mercadorias de “duplo-uso” para a Rússia. Nem uma palavra sobre o sistema financeiro dos Estados Unidos forçar de forma malévola os bancos turcos a pararem de aceitar os cartões de pagamentos MIR da Rússia.
No front das fantasias desejosas, essa pérola se destaca entre muitas outras: “O Kremlin parece acreditar que pode se sustentar voltando seu comércio para o sul e para o leste”.
Bem, a Rússia já está se dando muito bem por toda a Eurásia e em uma vasta parte do Sul Global.
A economia voltou a funcionar (os motores sendo o turismo interno, a fabricação de maquinário e a indústria metalúrgica), a inflação está em apenas 2,5% (mais baixa que em qualquer país da União Europeia), o desemprego é de apenas 3,5%, e a presidenta do Banco Central, Elvira Nabiullina, afirmou que em 2024 o crescimento voltará aos níveis anteriores à Operação Militar Especial.
A Terra dos Think-Tanks é congenitamente incapaz de entender que mesmo que os países dos BRICS ainda tenham alguns assuntos sérios de crédito comercial a acertar, Moscou já demonstrou que mesmo a sugestão do lastreamento forte de uma moeda pode virar o jogo de forma instantânea. A Rússia vem, ao mesmo tempo, lastreando não apenas o rublo mas também o yuan.
Enquanto isso, no Sul Global, a caravana da desdolarização avança inexoravelmente – por mais que as hienas da guerra por procuração continuem a uivar no escuro. Quando a escala total – avassaladora – da humilhação da OTAN na Ucrânia se revelar, possivelmente em meados do verão, o trem-bala da desdolarização já estará irremediavelmente lotado.
A “oferta impossível de recusar” ataca de novo – Como se tudo o que foi dito acima não fosse tolo o suficiente, o manifesto dos estados-pêndulo redobra o ênfase no front nuclear, com a acusação de “futuros riscos de proliferação (nuclear): em especial contra – quem mais seria? – o Irã.
Por sinal, a Rússia é definida como uma “potência média, mas em declínio”. E “hiper-revisionista, ainda por cima”. Bem, com “especialistas” como esses os americanos nem precisam de inimigos.
E sim, a essas alturas você deve ter boa razão para estar rindo às gargalhadas: a China é acusada de tentar direcionar e cooptar os BRICS. A “sugestão” – ou oferta impossível de recusar ao estilo Máfia – aos estados-pêndulo é que os estados-pêndulo não podem se aliar “a um corpo dirigido pelos chineses e auxiliado pela Rússia que se opõe ativamente aos Estados Unidos”.
A mensagem é inconfundível: “A ameaça da cooptação sino-russa de um BRICS expandido – e, através dele, de todo o Sul Global – é real e tem que ser tratada”.
E aqui vão as receitas de como tratá-la. Convidar a maioria dos estados-pêndulo para o G-7 (aquele miserável fracasso). “Mais visitas de alto nível de diplomatas importantes dos Estados Unidos” (bem-vindos à distribuidora de biscoitos Vicky Nuland). E, por último, mas não menos importante, táticas mafiosas, como em “estratégias comerciais mais ágeis, que comecem a resolver o problema do acesso ao mercado americano”.
O manifesto dos estados-pêndulo acaba deixando escapar a questão central, prevendo, ou melhor, torcendo para que “as tensões Estados Unidos-China aumentem drasticamente e se transformem em um confronto do tipo Guerra Fria”. Isso já vem acontecendo, por provocação do Hegêmona.
O que viria a seguir, então? O tão buscado e maquinado “desacoplamento”, forçando os estados-pêndulo “a se alinharem mais estreitamente com um lado ou com outro”. Estamos de volta ao “você está do nosso lado ou está contra nós”.
Aí está: crua e em carne viva – com ameaças veladas incluídas. A Guerra Híbrida 2.0 contra o Sul Global ainda nem começou. Estados-pêndulo, vocês foram avisados.