Associo-me ao artigo O “nós contra eles” é ruim? Mas o que fazer no caso do “eles contra nós”?, do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado pelo UOL. Sigamos no texto:
Li artigos e editoriais apontando que Lula é quem mais tem a perder com um suposto “nós contra eles”, que teria decidido pôr em prática, e isso é dito ou escrito num tom que vai do aconselhamento rabugento à mais severa reprimenda, como se o presidente tivesse, sei lá, anunciando que, se vencer a eleição, pretende impor soluções “à força”. Que eu me lembre, este foi Flávio Bolsonaro, falando em nome do pai. Alguns dos que se comportam agora como os Catões de Lula ficaram com o bico bem fechado. Essa gente pode não ter lá uma moral muito elevada, mas tem lado. Ademais, se Lula vai mesmo quebrar a cara e se estes, de que falo, torcem para que quebre — e assim é — só lhes resta, então, fazer votos para que o petista faça o que consideram errado. Ou perdi alguma coisa? Também o raciocínio lógico anda em baixa, não é mesmo?
Mas cumpre indagar: Lula está investindo no “nós contra eles”?
Quando o Congresso arma patuscadas para manter desonerações e derrubar vetos, espetando R$ 106,9 bilhões nas costas do Executivo, estamos a falar de quê? Do “eles contra nós”? Mas aí cumpre perguntar: quem são eles? Quem somos nós?
O PDL inconstitucional com que o Congresso decidiu brindar o Executivo é um exemplo de quê? De harmonia entre os Poderes? Estou enganado ou se lê no Inciso V do Artigo 49 da Constituição o que segue? Transcrevo:
“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”
O Projeto de Decreto Legislativo é raramente empregado — a última notícia que se tinha a respeito datava de 1992, no governo Collor — porque, como se lê acima, existe para as raras vezes em que, com efeito, a Presidência da República decide usurpar uma competência do Congresso. No caso, deu-se escandalosamente o contrário: o Legislativo decidiu anular uma atribuição que é do Executivo. Trata-se do “nós contra eles” ou de “eles contra nós”?
Pior: a medida derrubada ilegalmente tinha feito parte de um entendimento prévio entre os dois Poderes, não é? Como estão a recomendar os que agora advertem Lula com sortilégios. A reunião aconteceu no dia 8 de junho. Na sequência, Hugo Motta, presidente da Câmara, falou com a imprensa: “Pessoal, primeiramente, [quero] dizer que hoje foi uma noite histórica, onde tivemos, acredito que pela primeira vez, pelo menos nesses últimos anos, uma reunião conjunta entre os líderes da Câmara e os líderes do Senado Federal, com a presença do ministro da Fazenda, toda a sua equipe, da ministra da Secretaria de Relações Institucionais, e o governo, atendendo a essa posição do presidente do Senado, do presidente da Câmara, representando as duas Casas, hoje trouxe essa alternativa (…). É importante registrar que isso só foi possível graças a esse trabalho que nós fizemos junto ao Ministério da Fazenda”.
O que Motta disse, com a concordância de David Alcolumbre, presidente do Senado, na noite do dia 8 já começou a ser alvejado no dia seguinte. “Eles contra nós ou nós contra eles”?
Quem está a roer a corda de qualquer entendimento? Afirmar que o presidente Lula ou que o Ministério da Fazenda não buscam a “conciliação” ou que nome tenha a harmonia entre os Poderes é uma falácia. Num vídeo que tenta ser engraçadinho, que Motta publicou ontem nas redes, o presidente da Câmara afirma que “quem alimenta o nós contra eles governa contra todos”. É uma frase de efeito razoável, que serve para ser chamada de “dura advertência” ao governo federal, como se fosse este a buscar o confronto. Mas o fato é que essa versão não se sustenta nos fatos.
“Ah, mas o governo promove uma guerra dos pobres contra os ricos”. É sério? Num país em que há R$ 860 bilhões de despesas tributárias, que alimentam interesses bilionários e de nada servem aos miseráveis, quando se fala em congelar salário mínimo, aposentadoria e outros benefícios, sem mexer nos interesses nababescos, não parece correto afirmar que se está tentando promover uma guerra, então, dos ricos contra os pobres, como se esta não fosse uma condição histórica, permanente, do país, o que ajuda a fabricar uma das sociedades mais desiguais do mundo?
Estes que agora apontam “a guerra do nós contra eles” — ou do “eles contra nós”? — reagiram com indignação à manutenção da mamata do Perse ou da desoneração dos tais 17 setores? Ou da sem-vergonhice que se fez no setor elétrico? A verdade é que o Congresso foi se acostumando, nestes dois anos e meio de pauleira contra Lula, a fazer o que bem entendia, enquanto a crítica se divertia em apontar a “desarticulação” do governo.
A economia está muito longe do quadro pintado pelos anunciadores diários do apocalipse, o que não quer dizer que inexista um problema fiscal. Existe. Como a resposta tocou minimamente, na rebarba, em interesses poderosos, aí veio o papo-furado do governo que só quer aumentar impostos…
Aqueles que tonitruam palavras de ordem contra o governo não dizem o que querem, embora se saiba com clareza… o que querem: manter intocados os R$ 860 bilhões que vão para as burras dos ricos, com seus poderosos lobbies no Congresso, e rever a política de valorização do salário mínimo e da aposentadoria, além e cortar verbas de saúde e educação.
Explicitar o que cada um quer corresponde a fazer a guerra do “nós contra eles”? Mas o que fazer quando “eles” não querem nenhuma forma de entendimento e lançam palavras de ordem contra “nós”?
O país cresce, o desemprego e a desigualdade são os menores das suas respectivas medições e se tem a maior renda per capita domiciliar desde 2012. E, sim, há um problema fiscal que é absolutamente equacionável, desde que “eles” aceitem que já tiraram bastante de “nós” e resolvam colaborar não muito além do limite de um pouco de decência.
Lembro-me de “O Auto da Lusitânia”, em que o dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536) opõe as personagens “Todo o Mundo” — caracterizado como “homem rico mercador — e “Ninguém”: “um homem, vestido como pobre”. O diálogo dos dois é mediado por dois demônios: Belzebu e Dinato. Transcrevo um trecho:
Ninguém
— Como hás o nome, cavaleiro?
Todo Mundo
— Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.
Ninguém
— Eu hei [nome] Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu
— Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato
— Que escreverei, companheiro?
Belzebu
— Que Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo, dinheiro.
A grita é gigantesca e se fazem ameaças à luz do dia, entre outras razões, porque parte considerável da população está percebendo quem quer o quê. E o que querem os capas-pretas do Congresso, além de gritar “vamos cortar”?
É preciso exigir que “eles” digam o que querem cortar e o que “nós” temos com isso.
Ou se deve interditar esse debate?