ser mãe

O registro de um tempo

Dia desses, eu estava sentindo meu bebezinho Artur dar uns pulinhos, achava estranho. Muito de leve, constante.  Enquanto isso, Augusto estava na cozinha. De repente, gritou:

– Ai, que coisa, este soluço que não passa!

E então me dei conta de que, na verdade, Artur estava com soluço dentro da minha barriga.

De uma gravidez para outra, a gente esquece quase tudo, ainda mais quando o intervalo entre as duas gestações é bem grande, como no meu caso. Ainda bem que a escrita nos salva. Na época em que estava grávida do Augusto, eu tinha um blog. E achei esta postagem, de janeiro de 2007:

"Além disso

Augusto está um perfeito campeão de salto triplo! O guri de vez em quando passa um tempão soluçando, tadinho, fica todo incomodado. Mas já conhece a minha voz e a de outras pessoas também, e mesmo eu sendo um fracasso na arte musical, ele gosta quando eu canto pra ele. Vai nascer fã de Nei Lisboa!"

Nove anos atrás, eu registrava minhas impressões num blog. Hoje, as redes sociais constituem-se como uma das ferramentas de registro. Cuidar conteúdo e forma daquilo que se escreve é tão importante quanto resgatar a lembrança muitos anos depois.

Mas, muito antes disso, a Literatura já cumpria, em grande parte, esse papel. Mesmo que se pense na obra literária como objeto puramente estético, que pode ser lido independentemente de seu tempo, não há como negar (eu, pelo menos, associo-me a essa ideia) que ela é fruto de uma relação com seu contexto histórico-social. Ainda que por meio da ficção, registra modos de viver.

Recentemente, terminei de ler A festa do bode, de Mario Vargas Llosa, que trata sobre o regime ditatorial de Rafael Trujillo na República Dominicana. Numa narrativa impressionante, o autor registra o horror do regime instaurado, mas, ao mesmo tempo, é possível ler a obra atentando apenas para a figura ficcional do ditador, com todas as suas fragilidades e astúcias. É, sem dúvida, um excelente romance.

Pensando nessa relação entre ficção e realidade, fui à minha estante e peguei O Processo, de Kafka. Publicada em 1925, é uma obra que nos instiga por demais, considerando a trajetória do personagem Joseph K., sujeito a um longo processo de julgamento por um crime não especificado.

Acho que é uma boa escolha, porque, para além da questão estética e atemporal, faz muito sentido lê-la hoje. Especialmente nos intervalos da Sessão de Julgamento a que assisto na TV Senado, enquanto Augusto e Artur – ao meu lado ou na minha barriga – soluçam.

 

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