3º Neurônio | comportamento

O sapo e o escorpião ou a questão da autocensura nas redes sociais

Vocês já tiveram crise de autocensura? É a mais perversa das censuras. É onde você se sente impelido de escrever aquilo que você deseja por uma espécie de consciência subjetiva, forçada por algum motivo, que pode ser moral, social ou um simples desconforto. É uma proibição forçada imposta por uma força que vem só de você e de mais ninguém. Pode ser, também, uma imensa vontade de não querer se incomodar. No meu caso, trata-se de uma manifestação de isolamento intelectual, uma redoma onde estou em que minhas ideias circulam entre elas e ficam, num local hermeticamente fechado, sem acesso, inalcançável. A autocensura é o bloqueio intelectual mais fatídico de todos. É pior do que não ter ideia. Quem não tem ideia não envelhece. É ter uma ideia, saber como divulgá-la e não conseguir. É ter tanto pra falar e ter medo de falar. É como o jovem que tem um diário inofensivo, mas não mostra para ninguém. É como um escritor de textos para si. É como uma voz que tanto tem a dizer, mas se cala.

Minhas participações nas redes sociais andam restritas a fotos bobas no Instagram, compartilhamento das minhas tarefas no Facebook e mínimas interações no Twitter. Existem várias razões para essa ausência. A primeira delas é esse momento brasileiro, esquizofrênico, paranoico, cheio de ódio. O segundo motivo é o clima de pós-verdade que se relaciona com isso, onde não há espaço para o debate, para a reflexão, para a exposição do contraditório. Há, apenas, a criação de uma verdade absoluta constituída, imutável, definitiva. Um terceiro ponto é aquele onde as pessoas encaram aquele que escreve algo divergente como um inimigo a ser batido. A única função é desqualificar, destruir, acabar com essa pessoa. Por fim, em sentido mais pessoal, por ter recebido uma série de unfollows, blocks e mutes de gente que me conhece e, supostamente, sabe o que e quem eu sou.

Recentemente, fiz críticas ao modus operandi de parte da esquerda brasileira, ao deslumbramento da atual geração de jovens, à infantilização nas redes sociais e a tantas outras questões que atingem diretamente pessoas que, por algum motivo, acho que possuem identificação comigo. Foi o suficiente para que esta identificação se transformasse numa visão equivocada do que eu sou. O que mais me chama atenção é que pessoas que defendem uma suposta pluralidade não convivem com uma ideia divergente sequer. É o caso da interpretação seletiva, que apreende só aquilo que serve. É a famigerada seleção restritiva das ideias: só é bom quem é como eu. Empatia é, de acordo com o Dicionário Houaiss (2015), a capacidade de partilhar dos sentimentos e emoções de outra pessoa. A grosso modo, é a forma com que as pessoas se relacionam com outros sujeitos e objetos. Cada um tem sua produção de empatia de formas diferentes. Eu, por exemplo, construo uma relação de duas formas. A primeira delas é quando eu conheço a pessoa e, de certa forma, ela nunca me fez nada, não há motivos para que eu queira o mal dela. Tampouco distância dela. A segunda é quando eu não conheço a pessoa e há uma relação especial com aquilo que ela me passa, ou seja, pelo conteúdo dela. Sigo diversas pessoas que nunca vi na vida. Porém, o que elas mostram, escrevem e produzem têm minha admiração, meu gosto e minha vontade de acompanhar. É difícil que eu perca essa relação e assumo admiração até por quem pensa diferente de mim. É um exercício difícil, mas dentro de regras de civilização que eu prezo, há várias pessoas com pensamentos diferentes dos meus que fazem parte das minhas “relações virtuais diárias”.

Diante de tantas perspectivas negativas que eu vejo nas redes sociais e no ambiente de convergência (a pior delas, sem dúvida, a clara possibilidade do anonimato como forma de defesa), definitivamente não está o fato da pluralidade de opiniões e da atribuição de pesos iguais a quem é ou não da imprensa. Eu não sou o dono de verdade alguma. Gosto de gente que pensa. Adoro gente que discorda de mim. Não tenho vocação para ser condutor de ideia alguma. Sou dono das minhas ideias, que não são definitivas e um produto dos meus erros e incoerências. Eu luto pelo direito de ser incoerente. Eu luto pelo direito da minha opinião ser reconsiderada na próxima esquina. Sou um real defensor da multiplicidade de ideias, do contrário, do que é anti, do que é anti-eu inclusive.

O escorpião precisava atravessar o rio e pediu uma carona ao sapo. O sapo não queria oferecer a garupa ao escorpião, pois ele poderia ser picado a qualquer momento. O escorpião disse que se isso acontecesse, ele morreria junto, pois perderia a carona. O sapo aceitou e lá foi o escorpião nas costas do anfíbio. No meio da travessia, o escorpião pica o sapo:

— Você me picou? E agora, você vai morrer junto comigo!

— Desculpe, mas é da minha natureza picar. A gente não foge à nossa natureza.

Mas a gente não foge à nossa natureza. Minha natureza é soltar aquilo que eu penso, independente dos outros. Não é da minha natureza pedir desculpas ou apagar aquilo que eu penso, mesmo que seja incoerente. Também não é da minha natureza me vestir de senso comum dos pés à cabeça e sair reproduzindo pensamentos alheios. E, definitivamente, não é da minha natureza me autocensurar. É doloroso quando isso acontece. É terrível não conseguir escrever por causa dos outros. Minha natureza é, de maneira torta, desgraçada e por vezes incoerente, produzir meus próprios pensamentos. Eles não são para atingir as pessoas. Eles são só aquilo que eu penso. O problema é o umbigo alheio, que acha que tudo tem um alvo específico — no caso, ele. Meu alvo, alguma vez na vida, será um de vocês, inevitavelmente. Será eu mesmo. Serão nós, porque eu realmente não acredito que exista essa vida perfeita, incriticável e luminosa que a gente prega por aqui. Porque é da minha natureza criticar, porque não é por mal, é por um anseio inexplicável de tentar reproduzir em texto aquilo que meus sentidos absorvem.

Não é fácil me conhecer e é relativamente difícil gostar de mim. É quando eu descubro, ao fim e ao cabo, que, além de ser rancoroso, não sei lidar com rejeições. Eu lido bem com críticas, mas não sei lidar com o desprezo dos outros. Eu também odeio confete gratuito, caso vocês não saibam. O texto não tem essa intenção. Ele serve como uma espécie de desabafo, em tom confessional, uma garantia de que eu ainda sei fazer aquilo que eu gosto e, sobretudo, preciso: escrever sem filtro, sem polimento, em estado bruto. Uma velha metralhadora verbal enferrujada e com medo de atirar para tudo que é lado. Ou um sujeito que só queria colocar suas ideias sem essa maldita autocensura que faz com que eu pense 12 vezes em publicar esse texto singelo.

Entre unfollowsblocks e mutes, há um meio termo nisso que é a indireta. Eu leio as que são sobre mim. Todas. Ao contrário do que vocês pensam, eu tenho acesso a elas. Numa delas, eu li que determinada pessoa tem “pena” de mim e que eu era um cara “infeliz” por escrever algumas coisas que eu escrevo. Diferente do que tal pessoa pensa, eu não sou infeliz. Eu nunca me senti tão feliz e tão apto para desenvolver aquilo que eu projeto. O fato de eu ter ideia própria e de não querer espalhar um falso amor da boca pra fora não faz de mim um cara que não ama. O fato de eu criticar um monte de coisa não faz de mim um solitário. O fato de eu adorar meus erros e incoerências e aprender com alguns, repetir outros, cair, levantar e viver quase 40 anos nesse loopingnão faz de mim um recalcado. Pelo contrário. Não me arrependo de nenhum texto meu, ainda que não pense o mesmo sobre alguma coisa que escrevi há, sei lá, dez anos. Porque este sou eu. Porque eu mereço críticas, não indiretas. Porque eu aceito divergências, não falso moralismo disfarçado de pluralidade. Porque eu preciso da divergência, porque esta é minha natureza. Porque eu atravesso o rio da forma que eu quiser, sem precisar da carona do sapo. Eu sou a picada do escorpião. Eu não sou o escorpião que atravessa o rio e cumprimenta o sapo no final, porque não é a natureza do escorpião fazer isso. Ninguém foge à sua natureza.

 

Carlos Guimarães é jornalista (PUCRS); comentarista esportivo (Rádio Guaíba); mestrando em Comunicação e Informação (UFRGS); especializado em Jornalismo Esportivo (UFRGS).

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