A partir de uma das capelas da Funerária Rainha da Paz, na altura da parada 57 da Avenida Flores da Cunha, em Cachoeirinha, o que se vê é o movimento frenético dos carros, apressados, em direção a Gravataí ou a Porto Alegre. Mas na memória dos que estavam naquela capela na manhã desta segunda-feira (29), a imagem da avenida era bem mais romântica.
O ano era 1963, aquela imensa avenida era só uma faixa pavimentada cercada por terra e mato, o trecho da atual parada 57 nada mais era do que uma colina no caminho para Gravataí — na época Cachoeirinha era um distrito do município vizinho —, uma carroça tomava a frente de uma verdadeira multidão. Eles seguiam a pé, em carros, em charretes, de ônibus. Caminhavam em direção ao centro de Gravataí, mais precisamente, o prédio da prefeitura. Carregavam, praticamente nos braços, um campeão de votos.
Ruy Teixeira, o representante deste distrito, acabara de ser eleito vice-prefeito na chapa com Dorival Cândido Luz de Oliveira, em um pleito histórico, que derrubou do poder o grupo conservador que se revezava no poder por 20 anos.
— Naquela época, também se votava para o vice-prefeito, separadamente do prefeito. E o pai fez mais votos que o Dorival. Foi histórico — recorda o filho mais velho, Firmino Teixeira, hoje com 69 anos.
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Morre Ruy Teixeira, o emancipador de Cachoeirinha
Do lado de dentro da capela, o pai dele, reconhecido na história como um dos emancipadores de Cachoeirinha, era velado. Não resistiu a uma infecção, aos 97 anos, no final da tarde de domingo. À tarde, Ruy Teixeira seria sepultado no jazigo da família, no Cemitério Municipal de Gravataí.
Mas o velório era como um último encontro com o homem que era a enciclopédia e uma espécie de consultor para praticamente todos os políticos que assumiram o comando da cidade que ele ajudou a idealizar.
— Aquela carroça que nos levou daqui até a frente da prefeitura de Gravataí era a mesma que nós, eu e os meus irmãos, ainda bem novos passávamos as madrugadas percorrendo as paradas de ônibus pintando o nome do Brizola e o símbolo do PTB. Na nossa casa, sempre se respirou a política. A cada período eleitoral, tudo virava um comitê — conta Firmino.
Prefeito com 80% dos votos
Três anos depois daquela festa, o ainda vice-prefeito de Gravataí não parou de se movimentar na defesa do distrito. Conquistou, com um grupo de líderes, que incluía o empresário José Prior (agora o único daquele grupo ainda remanescente, com 92 anos), a emancipação de Cachoeirinha. Dois anos depois, em 1968, quando acabou o mandato ao lado de Dorival, Ruy Teixeira se tornou o primeiro prefeito eleito do novo município com uma votação recorde: 80% dos eleitores locais o escolheram. Até hoje, nenhum prefeito que o sucedeu ultrapassou este índice.
— O pai adotou Cachoeirinha como uma causa pessoal, mesmo. Ele abraçou esta cidade — conta a filha, Crisnadaia Teixeira Konig, 63 anos.
Ruy Teixeira era natural de Lavras do Sul, passou por Porto Alegre, onde chegou a ter uma fábrica de conservas na zona norte, e chegou a Cachoeirinha em 1950, aos 29 anos. Na Rua Rui Ramos, havia a casa da família e outras duas. Não tinham água nem luz. E ali começaram as causas deste ser, acima de tudo, político.
— Ele era um líder ao natural. Como era o único que tinha carro nas redondezas, virava ambulância, carro fúnebre, transporte — lembra o filho.
O ingresso na política partidária começou com a eleição a vereador, ainda por Gravataí. Ao lado de Fidel Zanchetta, que acabara de investir em áreas no distrito de Cachoeirinha, brigou para começar a urbanização da região.
: Com o amigo e companheiro de lutas, Leonel Brizola | ARQUIVO PESSOAL
Fake news levou à cassação
Mas nem tudo são flores na trajetória de Ruy Teixeira por Cachoeirinha. Seu governo no novo município durou somente um ano e meio. Em julho de 1969, ele foi alvo do Ato Institucional número 5, o AI-5. Mesmo sendo tenente do Exército, teve seus direitos políticos cassados por ser um brizolista convicto.
— O pai nunca teve mágoa dos militares por isso, porque ele sabia que não tinha sido o governo militar que armou a cassação. Foi uma armação, uma vingança — conta Firmino.
Sim, a retirada de Ruy Teixeira do poder foi tramada na mesa de um bar em frente à prefeitura de Gravataí. Estavam lá os representantes da Arena, antigos udenistas, que eram os conservadores da cidade, ainda inconformados com a ascensão dos populares Dorival de Oliveira e Ruy Teixeira. Eles deduraram o primeiro prefeito eleito de Cachoeirinha ao DOPS.
Era um período efervescente no novo município. A população clamava por ônibus que funcionassem e atendessem à demanda local. Houve protestos — algo arriscado nos anos de chumbo —, com ônibus quebrados e outros incidentes. Ainda não existia internet, mas a fake news na política local funcionou. Uma foto, com Ruy Teixeira discursando sobre um ônibus foi o estopim para a sua cassação com as alegações do AI-5.
— Estávamos no fim do dia, eu ajudava o pai em uma reunião com secretários e ouvíamos a Voz do Brasil. Daqui a pouco, falam o nome do Ruy Teixeira como um dos cassados com base no AI-5. Depois é que fomos saber o que tinha sido preparado contra ele. Aquela imagem, na verdade, era do meu pai falando para as pessoas se acalmarem e não quebrarem nada. Usaram a imagem com outro contexto — lamenta o filho mais velho.
Teixeira era militar, então, no dia seguinte se apresentou ao 3º Exército e recebeu a ordem de cassação. Nos dias seguintes, a coisa endureceu.
— Foi bem traumático aquele momento. Entraram na nossa casa, e não eram nem um pouco amistosos — lembra Crisnadaia.
É que os agentes do DOPS foram até a casa da Rua Rui Ramos recolher "materiais subversivos". Levaram praticamente todas as lembranças que o pai havia ganhado de produtores de leite, caminhoneiros ou amigos.
Continência ao cassado
E como o clima pesou, muito mais pelas relações de Ruy Teixeira do que por ele próprio, já que era considerado um dos principais articuladores de Leonel Brizola na região. O líder político já estava exilado no Uruguai, e foi lá que o emancipador de Cachoeirinha encontrou abrigo até que as coisas acalmassem por aqui. Passou um mês ao lado de Brizola fora do território nacional.
Mas como ele conseguiu sair assim, sem ser incomodado, se era um cassado político? É que Teixeira era tenente reformado do Exército. Pegou seu carro e, para despistar sobre o seu destino, tomou o rumo do norte e saiu do país pelo Paraná. A cada barreira policial, apresentava a carteirinha de militar. Aí, ao invés de ser barrado, observava os militares lhe prestarem continência.
Os terrenos do zeu Zanchetta
No retorno, a gratidão dos cachoeirinhenses por Ruy Teixeira ganhou mais uma demonstração. Foram os líderes locais que o ajudaram a se reerguer, não como candidato a nada, mas em um novo ofício: corretor de imóveis.
— Lembro que o pai montou um escritório e atendia na sala da frente de casa — conta Crisnadaia.
Natálio Schlaim e Fidel Zanchetta, que tinham áreas à venda na cidade, lhe entregaram alguns lotes para que ele fizesse as vendas. Junto com os outros dois pioneiros, Ruy Teixeira ajudou a urbanizar bairros como o Veranópolis e a zona norte da cidade.
Mas ele era um líder, e um político nato. Depois de criar a imobiliária, em 1970, que durou cerca de 20 anos, mobilizou companheiros e foi um dos mais atuantes líderes do CRECI no Rio Grande do Sul.
: Ruy Teixeira e José Prior emanciparam Cachoeirinha e cultivaram longa amizade | ARQUIVO PESSOAL
A amizade com o seu Prior
Foram dez anos com direitos políticos cassados. Mas quem disse que ele sossegava? Sem poder concorrer, Teixeira virou o conselheiro oficial dos políticos locais. Francisco José Rodrigues, que governo o município entre 1977 e 1983, foi um dos mais notórios seguidores dele. Mas não era nas fileiras do MDB (a oposição ao regime militar) que estava o seu maior amigo na política local. Este era José Prior, hoje aos 92 anos. Ele era da Arena, mas foi um dos que fez questão de ajudar Teixeira quando teve os direitos políticos cassados.
— Foram amigos até os últimos dias do pai. Toda a vez que se viam, sentavam e ficavam horas conversando. Tornaram-se grandes amigos. Juntos, eles construíram a história desta cidade — orgulha-se Firmino.
No começo dos anos 1980, quando a tensão da ditadura foi afrouxando e o PDT surgiu com Brizola à frente, Alceu Collares virou praticamente um membro da família dos Teixeira.
— Ele vivia lá em casa, respeitava muito as opiniões do pai e conviveu com ele em muitas campanhas eleitorais — lembra Crisnadaia.
A mais marcante, em 1982, quando perderam o pleito para Jair Soares. Em 1991, quando Collares assumiu o governo estadual, Ruy Teixeira tornou-se o diretor do Hospital de Cachoeirinha. Foi ele quem desenvolveu a maternidade, a lavanderia e a infraestrutura básica do hospital.
: Ruy, com quatro dos seis filhos, em sua casa | ARQUIVO PESSOAL
De Lavras para a história
Natural de Lavras do Sul, onde nasceu em 1921, Ruy Teixeira chegou em Porto Alegre ainda menino, aos 14 anos, quando o pai morreu.
— Ele veio para Porto Alegre como forma de ajudar a mãe com algum dinheirinho, que não conseguiria lá no interior — conta a filha, Marjorie Teixeira, 50 anos.
Coube a ela organizar as memórias do pai que resultaram em um livro dele e, por consequência, da história de Cachoeirinha. O menino Ruy Teixeira parou no centro de Porto Alegre, onde começou a trabalhar como engraxate em frente ao quartel do 3º Exército.
Ganhou a confiança dos militares e entrou para o quartel. Formou-se na escola de sargentos, no Rio de Janeiro, e depois voltou ao sul, reformando como tenente. Casou em Gravataí no começo dos anos 1950 e aí iniciou a sua trilha na transformação deste lugar.
Pai de seis filhos, Ruy Teixeira teve, naquela capela da parada 57 da sua Cachoeirinha, uma espécie de último encontro. Um bom e longo papo sobre a nossa história.
De hoje até quarta-feira (31), Cachoeirinha está em luto oficial.