memória

O vereador que passou 7 horas com Fidel Castro

Márcio Souza com Fidel Castro, em um bunker da revolução em Havana, capital e maior cidade de Cuba

Só no último dos quatro dias de estadia, um adido em uniforme e quepe verde oliva trouxe a resposta: a comitiva brasileira homenageada na Feira do Livro de Cuba conheceria ‘El Comandante’.

Hoje vereador de Gravataí, Márcio Souza não esquece aquele encontro de abril de 2005, ao assessorar o ministro da Educação Tarso Genro pelo arquipélago, a apenas 170 quilômetros dos Estados Unidos, mas ainda um mistério isolado no mar caribenho.

– Ouvi a História pela História – resumiu há pouco, em conversa de mais de uma hora com o Seguinte:, ainda em meio ao luto e às notícias sobre a morte de Fidel, amado ou odiado, líder revolucionário ou ditador, condenado ou absolvido pela História ou pelo tribunal do facebook.

– Agora restam mortos Fidel, Mandela e João Paulo II, os grandes vultos do século XX – divaga, como que constatando naquele momento que o tempo passa sem embargos.

 

O mojito e a ressaca econômica

 

Nos três dias, em que aquele março virou abril, Márcio e a comitiva do governo Lula, a bordo de um Ford da década de 40, o carro oficial que a funcionária pública Eliane Gonzales os conduzia, conhecera a Havana de 2, dos 12 milhões de habitantes de Cuba – o dobro da população de Porto Alegre.

Acompanhados dos ministros da educação básica e da educação superior, entre agendas oficiais e mojitos no El Floridita, o bar do 557 da rua Obispo eternizado por Hemingway, testemunharam uma sociedade empobrecida pela ressaca da decadência soviética, mas com acesso irrestrito a educação e saúde.

– Percebia orgulho da população pelas estruturas públicas, mas carência em suas vidas privadas – lembra um Márcio que ainda hoje equaliza decepção e empolgação ao falar do dia a dia de um povo culto, de crianças que querem ser professores, em escolas impecáveis e preparadas para a prática esportiva, com quadras e piscinas olímpicas, mas de moradias deterioradas mesmo na área central e onde engenheiros precisam dirigir táxis para sobreviver.

– É nada além do mínimo, mas ninguém vive nas ruas, ou fica sem atendimento médico – acrescenta, lembrando ter encontrado por lá Patrícia Pillar, atriz com relação estreita com o país que a ajudou a superar um câncer raro dois anos antes.

 

 

Despistando a Cia

 

Às 17h do 2 de abril, com segundos de atraso, um carro mais novo, sem nenhum tipo de identificação, apanhou-os na Casa de Passagem, mansão expropriada dos ricos latifundiários que funcionava como uma espécie de hotel para delegações de países convidados.

Um motorista de monossilábicos ‘sim’ e ‘não’ revelava que a função pública afasta a extroversão cubana que pelas ruas elogia e critica o governo sem modular a voz.

Após quase uma hora circulando pelas policiadas ruas sem outdoors publicitários, e onde se viam os primeiros negócios particulares e as curiosas ‘casas de armas’ (paióis prontos para, em cinco minutos, armar a população em caso de invasão norte-americana), a surpresa.

– Como o Tarso me arrastava para sua caminhada matinal, percebi que estávamos quase no mesmo lugar de onde saímos, a não mais de dois minutos do nosso hotel – diverte-se Márcio.

O prédio onde pararam não era o Castillo de los Tres Reyes Magos del Morro, suntuoso forte que entre canhões guarda desde 1762 a baía de Havana dos ataques dos velhos piratas caribenhos e novos corsários americanos. Mas era um bunker, revelado quando o que aparentemente era muro transformou-se em porta por trás de um espelho d´água.

Uma espera de quase meia hora em antesalas por onde entravam e saíam jovens, de não mais de 20 anos, também em oliva e preparados desde crianças para aguentar a rotina de um comandante agitado e que pouco dormia, e um dos barbudos mais famosos do mundo depois de (para quem acredita) Jesus Cristo apareceu ao fundo de outra portinhola imperceptível.

Com um sinal de mão, Fidel Alejandro Castro Ruz convidou-os a entrar em um amplo – e sem janelas – saguão decorado com móveis ao estilo Luis XV. Em inimagináveis, calorosos e firmes cumprimentos de um metro e noventa, o idealizador do 26 de Julho, movimento que em 1º de janeiro de 59 derrubou o ditador Fulgêncio Batista, ali mesmo, em pé ao lado de uma longa mesa, marchou com a memória para, em detalhes, descer de Sierra Maestra para a História.

– A cada passagem ele parava por alguns segundos, como que abrindo uma gaveta no cérebro, e falava sem parar um sem número de informações. Da Revolução e consequências do embargo a cada área do governo, até um programa de erradicação do analfabetismo no nordeste brasileiro, que queria que levássemos ao presidente Lula – recorda um Márcio surpreso por um homem que faria 80 anos, em 13 de agosto, ter ficado por três horas em pé.

 

 

O Comissário

 

Uma brincadeira de Tarso na hora das apresentações elevou Márcio na estima de El Comandante.

– Ele disse que eu era o comissário político.

Aos desacostumados com a nomenclatura comunista, o comissário, uma adaptação da Revolução Francesa feita por Trotsky ao Exército Vermelho russo, era o representante do partido a quem todas as ações eram relatadas, mesmo por figuras proeminentes da revolução.

– Ele pegou minha mão e me levou a uma sala contígua. Sentamos e ele me perguntou sobre minhas funções, sobre a política e começou a contar vivências íntimas da revolução.

– Constrangido, eu disse “comandante, o ministro e os colegas vão adorar ouvir essas histórias!” – diverte-se Márcio, que lembra uma passagem única:

– Alterando a voz ao grave, quase como uma atuação, Fidel contou que seu nome, ‘fiel’, era dado por um padrinho. Um latifundiário que foi o primeiro a ter as terras expropriadas. Fidel deu o primeiro exemplo da Revolução, mexendo com a própria família.

 

 

Vida longa!

 

Após um jantar refinado, mas apenas com produtos cubanos, o encontro histórico de sete horas, onde Che Guevara não foi citado uma única vez por Fidel, encerrou com novos abraços e uma caixa de 12 originais Cohiba-Lanceros, charutos vendidos a 500 euros mundo afora.

– Vida longa! – foi a última saudação que Márcio, ouviu daquele homem uniformizado, que sobrevivia a uma sentença de morte nunca revogada pela Cia, do qual ouviu falar pela primeira vez pela TV, lá pelo meio dos anos 70, e estudou na adolescência do extraclasse com professores-militantes de Tuiuti, berço da esquerda e do PT de Gravataí.

Aos 34 anos, essa imersão na história, registrada na era pré-celular por uma câmera digital comprada no aeroporto do Panamá, e autorizada por El Comandante para surpresa dos militares que queriam preservar aquele que era um dos 50 esconderijos da Revolução, mudou sua visão da política e do mundo.

– Uma coisa é a teoria, outra a realidade. Antes, para mim, não havia questionamento. O fato de não morrer de fome, ter boa escola, saúde e segurança era o segredo da felicidade. Naqueles poucos dias percebi a falta que a liberdade e oportunidades para todos fazem a um povo.

– Por mais defeitos, a democracia é imprescindível – conclui o político que privou de sete horas com uma, desde a última madrugada, lenda da história da humanidade.

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