Foi de 1h37min02seg o tempo de conversa gravada com o presidente da Associação dos Aposentados e Pensionistas de Gravataí, Ivo José Pacheco. Tempo demasiado curto, porém, para conhecer toda a história desde pai, avô, ex-carreteiro, agricultor, professor, político, contabilista e, desde setembro passado, bacharel em Direito. Um diploma que conquistou aos 86 anos e depois de oito anos frequentando a Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), campus de Gravataí.
Ivo, de um sorriso largo, gestos simples e memória pródiga, nem pode ser chamado de ancião! É um bon-vivant da terceira idade, que é como se define as pessoas bem-humoradas como ele é, jovial, que valoriza os prazeres da vida e sabe gozá-los. No próximo dia 12 de novembro ele vai comemorar 87 anos, já está planejando a preparação para prestar exame da Ordem do Advogados do Brasil (OAB) e fala até em cursar uma pós-graduação para especializar-se em Direito Previdenciário e Trabalhista.
: Ivo, criança, no colo da mãe, Erna, com a avó Elvira, a bisavó Luiza e a tataravó Cristina
Natural de Gravataí, veio ao mundo lá em 1929 no distrito de Santa Tecla, quase divisa com Novo Hamburgo, onde ainda mantém o sítio que foi dos avós, depois dos pais, e que hoje lhe serve de moradia. Espaço onde cria galinhas, mantém uma horta e que cuidava, com o próprio esforço, para que o mato não tomasse conta, fazendo ele mesmo as roçadas necessárias.
Viúvo de Teresinha Costa Pacheco, com quem foi casado por 43 anos, o pai de Márcia (aposentada do município), Dartagnan (comerciante do ramo de confecções) e Mara (advogada), atualmente vive – há nove anos – com Eloá Inácia Borges dos Santos. É avô de três meninos e uma menina e dá risada quando lhe é perguntado se têm bisnetos.
— Ainda não. Mas deve estar em planejamento, já!
Carroceiro
Antes de servir ao Exército Brasileiro, no 2º Regimento de Cavalaria Mecanizada, em Porto Alegre, Ivo José Pacheco ajudava os pais nas lides do sítio, e antes ainda chegou a ser carroceiro, transportando mercadorias para uma espécie de entreposto – o Armazém Vista Alegre – que ficava próximo da avenida Marechal Rondon, atualmente divisa dos municípios de Gravataí e Cachoeirinha.
: No 2º Regimento de Cavalaria Mecanizada, no bairro Serraria, em Porto Alegre
Depois do período como militar chegou a trabalhar em uma empresa de distribuição de combustíveis, em Canoas. Quando casou com Teresinha, voltou para “a roça”, que é como ele chama o meio rural e o sítio de onde a família tirava o sustento do dia a dia. Ali na Santa Tecla era plantada mandioca, milho, hortifrutis, temperos, e eram mantidas criações de galinhas, porcos e vacas, para ter ovos, banha, linguiça, leite…
— Tudo que a gente precisava tinha que sair dali. Os únicos mantimentos que eram comprados eram o sal e o arroz. Até o açúcar a gente fazia no sítio, do melado da cana-de-açúcar. Era o mascavo. Açúcar branco, como era chamado, era luxo.
Aliás, naquele tempo, arroz só aparecia na mesa quando a família recebia visitas. E com o que plantavam ou criavam, produziam tudo que necessitavam para o sustento do dia a dia.
Dinheiro e baile
Nos tempos de mocinho, Ivo era mais um dos que tinha que programar a obtenção do dinheiro necessário para ir ao baile. No máximo dois por ano. No caso do atual presidente da Asapeg, a combinação era feita com o avô. Ele derrubava mato, geralmente “amaricás”, que transformava em lenha para vender e ter as moedas que precisava para gastar na bailanta.
Já nos bailes, recorda que havia respeito, e quando um jovem convidava uma moça para sentar-se à mesa dele – onde geralmente estavam os pais e outros familiares – e ela aceitava, isso já era “meio casamento” assumido. O fato de um casal dançar mais de uma música, era “dançar de par”, o que ensejava fofocas pelos cantos do salão.
: Com a primeira esposa, Teresinha, e os filhos Márcia, Dartagnan e Mara
O professor
Quando ainda trabalhava em Canoas, Ivo tinha o hábito de estudar nos intervalos e a qualquer tempo disponível. Ele frequentava em Porto Alegre um curso que dava conhecimentos equivalentes ao que seria, mais tarde, o 2º Grau, hoje o Ensino Médio. Por isso, e diante da carência de encontrar educador para o meio rural, foi convidado para ensinar as crianças da escola municipal na região em que morava.
: A formatura de Ivo Pacheco como professor Normal , na Escola Dom Diogo de Souza, em Porto Alegre
Mais adiante, já sob o governo do líder trabalhista Leonel de Moura Brizola, chegou aos quadros do Estado como professor, passando a lecionar onde hoje é Cachoeirinha, na Escola Rodrigues Alves. Foi nessa época e para adquirir conhecimentos mais amplos que passou a estudar, concomitantemente, na Escola Dom Diogo Souza, em Porto Alegre.
— Era uma escola preparatória, como são as profissionalizantes de hoje. Fiquei estudando ali uns seis anos.
Contabilista e político
Foi mais ou menos no tempo da Dom Diogo – ou logo depois – que Ivo Pacheco despertou para a área contábil, meio que ao acaso. Ele foi convidado por um amigo para estudar em Gravataí, no colégio Dom Feliciano. Montou um escritório de contabilidade em Cachoeirinha e estruturou uma boa carteira de clientes.
Vida quase estabilizada e boa credibilidade.
Foi quando outro convite mudou os rumos da até então vida pacata que levava, para que concorresse a vice-prefeito de Cachoeirinha, já município emancipado, na chapa de Francisco Rodrigues. A legislação previa que um mesmo partido apresentasse até três chapas majoritárias. A chamada sublegenda. O partido (ainda o MDB) ganhou a eleição, mas Rodrigues e Ivo Pacheco perderam por 216 votos.
Na eleição seguinte, em 1976, Francisco José Rodrigues e Ivo Pacheco se elegeram pelo PMDB, com mais de 2 mil votos de vantagem sobre o segundo colocado.
: Ivo, ao centro, na posse como vice-prefeito de Francisco Rodrigues, em Cachoeirinha
— Eu era uma pessoa completamente inocente, não imaginava como era ou deveria ser o comportamento. E com a política perdi praticamente o que tinha — conta, agora.
Até a casinha
A política levou de Ivo o escritório de contabilidade que ele foi obrigado a fechar, perdeu dinheiro e a “conta azul” que tinha no banco ficou no “vermelho”, e até a “casinha” que tinha adquirido na praia, para conforto da família, desapareceu. Não perdeu o sítio porque ainda estava no nome dos pais.
O envolvimento com criação de partido na cidade, reorganização da administração municipal entre outras atividades, tomaram seu tempo e os negócios pessoais ficaram de lado. Com Rodrigues, ficou no de Cachoeirinha por seis anos, de 1977 a 1983, no chamado “mandato tampão” para que houvesse coincidência e o próximo pleito fosse direto, de vereador à presidência da República.
A mágoa da vida
Pois foi justamente na política que o veterano e bonachão Ivo Pacheco adquiriu a que chama de “maior mágoa” da sua vida. Concorrendo, a prefeito de Cachoeirinha, para suceder Francisco Rodrigues, foi traído pelo seu companheiro de chapa e candidato a vice.
— É muito difícil o candidato a prefeito ter uma sintonia perfeita com o vice. É raro os dois andarem de mãos dadas. O outro candidato ofereceu para o meu vice uma licença para ele colocar um táxi na cidade, se fosse eleito. E ele aceitou.
Sobre os personagens dessa história…
— Conto o milagre, mas não conto o santo — diz, em meio a uma gargalhada, lembrando que perdeu a eleição por pouco mais de 400 votos porque praticamente não havia tempo hábil para encontrar um candidato substituto e refazer todo material gráfico da propaganda eleitoral.
: Com o então presidente do PDT gaúcho, Sereno Chaise, o vice-prefeito de Cachoeirinha Ivo José Pacheco, o ex-governador Leonel Brizola e o vereador Firmino Teixeira
Vereador e deputado
Antes da bancarrota financeira-pessoal por causa do seu envolvimento político em Cachoeirinha, Ivo Pacheco havia sido suplente de vereador pelo PTB de Brizola, indicado pelo distrito de Santa Tecla. Já candidato, teve que disputar os escassos votos da região com um primo que concorreu pela sigla adversária.
A disputa pelos eleitores acabou por causar o primeiro constrangimento político que Ivo enfrentou. Este, no âmbito familiar pela rivalidade que se estabeleceu. Ele conquistou 41 votos e, como suplente, assumiu a cadeira de vereador de Gravataí por dois períodos, de 60 dias cada, mediante acordo com os titulares.
E depois da experiência em Cachoeirinha Ivo se aventurou em uma disputa à Câmara Federal, com a finalidade de “alimentar” a legenda, o PDT. Dos 48 candidatos a deputado federal ele ficou na 36ª posição, com cerca de 14 mil votos, e brinca que na época os eleitos deveriam ter viajado ao exterior para que o avião fosse explodido e ele assumisse a vaga.
— Mas isso é brincadeira. Nem pensar numa coisa destas — se recompõe, em seguida.
Sabão em barra
Enquanto professor e dono do escritório de contabilidade, e morando no sítio de Santa tecla, Ivo mantinha uma rotina puxada. Acordava antes das 5h para tratar os porcos, as galinhas, ordenhar vacas, lavar cocheiras para, só depois, tomar café e se preparar para suas atividades, digamos, mais urbanas.
— E homem que lida com bichos está sempre fedendo, tem sempre um cheiro muito forte — recorda.
— E as 8h eu tinha que estar dentro da sala de aula. Então eu ainda tinha que tomar um banho, me escovar todo, com sabão em barra feito em casa.
: Ivo com a atual companheira, Eloá
Na Asapeg
Ivo José Pacheco chegou à presidência da Asapeg quase que por acaso. Ele já estava na associação e era membro da diretoria quando o presidente Antônio Ribeiro, que já estava há cerca de 12 anos na função, precisou se afastar por razões de saúde. Ele foi “intimado” para o cargo por Ribeiro, que ignorou até mesmo a existência do seu vice-presidente.
No próximo ano – dezembro de 2017 – Pacheco completa seu terceiro mandato, de três anos cada um, como presidente da Asapeg. Pela constituição da associação ele não pode se candidatar a um quarto período. Vai, enfim, aproveitar a entidade como associado, viajar, cantar no coral e participar dos bailes e jantares de confraternização.
Ele lembra que, quando assumiu como presidente, a Asapeg – fundada em 5 de agosto de 1984 – tinha cerca de 12 mil sócios. Atualmente, este número supera os 20 mil associados. Paralelamente, o volume de serviços e benefícios aos associados foi ampliado e até um terreno foi comprado, para a construção da futura sede própria da entidade.
E o Direito?
Admitindo que sua opção por cursar Direito se deu também por influência de Mara, a filha-advogada, Ivo José Pacheco se mostra um contestador. Ele reclama do emaranhado de leis vigentes lembrando que os índios se guiam por apenas 80 regras que norteiam a convivência na tribo, e admite que tem dúvidas sobre exercer ou não a advocacia.
— É uma linda profissão, mas a complexidade das leis, a grande quantidade de leis, e a esperteza dos homens, acabam deturpando a real finalidade do Direito — diz.
Ah, e por que o Direito?
— Por influência da esposa, a Eloá. Um dia conversando sobre o que a gente iria fazer, ela falou: “quem sabe um vestibular?”. Ela foi minha companheira de vestibular, passou também, só não seguiu adiante no curso.
A companheira admite que desistiu por não ter se adaptado às coisas da modernidade. Até hoje ela não usa, por exemplo, o computador, e como a maioria dos trabalhos necessitavam de acesso à internet ou do uso do equipamento para fins de digitação, Eloá optou por abrir mão e apoiar o companheiro.
Ivo, o contestador
Não bastasse a vida atribulada que teve, ao final do curso e ao ter que decidir sobre o tema que sustentaria no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), Ivo Pacheco voltou a ser Ivo Pacheco e decidiu por uma tese no mínimo inusitada e impensável. Ele optou por defender a extinção do exame da OAB, exigência constitucional para que os recém formados possam exercer a profissão.
Em meio a muita risada, o hoje bacharel – que depende justamente do exame para obter a carteirinha da Ordem – conta que os orientadores tentaram por pelo menos duas vezes dissuadi-lo da tese escolhida. Como perceberam que não conseguiriam, passaram a apoiá-lo e Ivo, enfim, concluiu e apresentou o trabalho à banca examinadora.
Com direito à platéia.
Aliás, muita platéia.
Auditório lotado, corredores cheios. E até a regra que proíbe filmagens durante a defesa da tese na apresentação do TCC foi quebrada.
— Não tinha como controlar tanta gente, e hoje, com estes celulares, fica impossível controlar. Muita gente fotografou e filmou.
: O diploma no curso de Direito, pela Ulbra, foi recebido por Ivo Pacheco em setembro passado, aos 86 anos
E a nota?
— Se eu conseguisse uma nota 6 ou 7 já sairia feliz da vida pelo desafio pessoal que foi. Depois da justificativa um dos examinadores falou: “nós conseguimos um 9 prá ti, o que tu acha?”… Bah, foi sensacional, e a galera veio a baixo! — recorda, com entusiasmo.
A opinião da companheira:
— O Ivo é uma pessoa muito calma e organizada. Trabalha bastante em casa, mas já trabalhou mais. Agora está com uns probleminhas na coluna e está até fazendo fisioterapia. Até pouco tempo ele que cuidava de tudo no sítio, roçava, organizava o galpão. Ele cuida da horta, e esta semana andou até semeando abóbora, melancia e plantou milho. É um ótimo companheiro, me transmite muita paz.
: Eloá garante que Ivo é um companheiro muito organizado e que lhe transmite calma
Diz aí, seu Ivo!
Qual o nome dos pais?
— Darci José Pacheco e Erna Wulff, Ela de descendência alemã e ele bugre puro. Tenho dois irmãos vivos, e tive uma irmã que morreu ainda muito novinha.
Acorda que hora?
— Isso é um problema. Não tem um horário certo para acordar. Saio do trabalho cansado, chego em casa e tomamos um cafezinho e, depois, um sofá para descansar e ver uma novela (Eloá entrega: — novela nada, dorme de roncar! Eu estou olhando a tevê e quando vejo ele já está ferrado no sono).
Tem restrições à alimentação?
— Não, nada. Graças a Deus a gente come de tudo. Até pedra com molho vai, se tiver um temperinho.
Gosta mais de um vinho ou cerveja?
— Vinho! Vinho, claro! Da cerveja eu já gostei muito mais, mas faz tempo. Hoje em dia a cerveja não é mais a mesma coisa, perdeu o sabor. Gosto do vinho, com limites, e não tem essa de ser mais caseiro, colonial ou elaborado… É o vinho que cai no copo!
Ainda gosta de dançar?
— E tem coisa melhor? Pena que agora começaram a aparecer umas dores… Já fui de dançar da primeira até a última música, sem falhar nenhuma.
E vem aí outra faculdade?
— (olhando para a companheira, Eloá) Tenho que amadurecer a idéia e conversar com meu grupo, tenho que convencer as bases. Pelo menos uma pós eu gostaria para me especializar.
: Ivo José Peixoto: presidente da Asapeg no seu terceiro mandato, até dezembro do ano que vem