Hoje em dia, pelo menos para os fanáticos metralhando teclados no Grande Tribunal das Redes Sociais, trazer informação é secar governo. Talvez nunca antes na história desse país tenha restado tão comprovada a teoria da ferradura, aquela que aproxima extremistas destros ou canhotos. Aos inimigos, a presunção de culpa! Como sou jornalista, não caça-cliques, vamos ao trabalho, aos fatos, aqueles chatos que atrapalham argumentos e bordões da nova ordem whatsappiana.
Passados 20 dias da saída dos médicos cubanos, Gravataí já contabiliza mais de 3 mil atendimentos a menos e tem apenas dois médicos substitutos contratados pelo Mais Médicos. Dos 18 inscritos que incluíram o município entre suas prioridades, outros oito fizeram contato com a prefeitura buscando mais informações. Dos demais, nem Apolo, Esculápio, Hígia ou Panacea tem notícia.
O cenário de ‘menos médicos’ não mudou em relação há uma semana, quando busquei informações junto à secretaria da saúde. Pelo Mais Médicos, se apresentaram em Gravataí somente duas médicas, já escaladas pelo secretário da saúde Jean Torman para trabalhar nas duas USFs que tinham ficado sem nenhum profissional: Morada do Vale II e Erico Verissimo.
Nas 11 unidades de saúde da família do município, onde os 17 cubanos trabalhavam oito horas por dia, acordados, fazendo 5 mil atendimento por mês, atualmente 26 profissionais tentam absorver a demanda, que se concentra principalmente na periferia.
Torçamos que baixe Hipócrates nos brasileiros. Segundo o Ministério da Saúde, até às 11h desta segunda-feira, 4.507 médicos compareceram ou iniciaram as atividades no país. É a metade das 8.376 vagas abertas emergencialmente com a saída dos cubanos. O número dobrou em uma semana, mas estamos a quatro dias do prazo final para contratações.
Há uma semana escrevi assim:
Acalmem-se os sempre nervosos, os indícios são de que, se não em Calabaço, no Ceará, que nunca tinha visto um médico antes da chegada da escrava cubana que atendia lá, Gravataí logo preencha as vagas que ficaram em aberto.
Não sou secador de pobre, então, de verdade, não vejo a hora de, quem sabe em 10 dias, postar a manchete: “Médicos brasileiros já substituíram todos os cubanos em Gravataí”.
Tinha a esperança de que, próxima à capital Porto Alegre, Gravataí não encontraria dificuldades para preencher as vagas, com salários de R$ 11.865,00 para 40 horas, pagos pelo governo federal, mais R$ 500 de auxílio alimentação e R$ 1.500 de auxílio moradia, estes custeados pela prefeitura.
O secretário da saúde Jean Torman, que conhece o entra e sai de médicos na prefeitura, não se empolga.
– Não tenho certeza de que as vagas serão preenchidas – resumiu, agora há pouco, ao Seguinte:.
Há plano b?
– Imediato, não. O prefeito fez o que podia – lamenta Jean, lembrando que, no dia seguinte ao anúncio da saída dos cubanos, Marco Alba determinou a chamada de sete médicos concursados, com mesma carga horária e salários. Ainda não há confirmação oficial da aceitação de nenhum. Do prazo de 60 dias, transcorreram 20. Mesmo que todos aceitem, não assumiriam os postos ainda este ano.
LEIA TAMBÉM
OPINIÃO | Menos médicos: o que prefeitura pode ou não fazer
Há ainda a previsão do governo Michel Temer de relançar o edital, mas aí abrindo vagas a médicos brasileiros ou estrangeiros formados no exterior. Sem a necessidade do Revalida, o que colocaria o futuro presidente Jair Bolsonaro no divã, já que tuitou assim sobre a qualidade da medicina cubana:
– Nós não podemos botar gente de Cuba aqui sem o mínimo de comprovação de que eles realmente saibam o exercício da profissão. Você não pode, só porque o pobre que é atendido por eles, botar pessoas que talvez não tenham qualificação para tal.
LEIA TAMBÉM
OPINIÃO | Em Gravataí, é menos médicos: 2, de 17 se apresentaram; calma, leia até o fim
O que os gestores em saúde sabem, e as estatísticas comprovam, é que o Mais Médicos nunca foi prioridade dos profissionais made in Brasil. Em 2013, ano do lançamento, apenas 6% das vagas foram ocupadas por médicos brasileiros. Para piorar, quem entra já pensa em sair. De 2013 a 2017, 54% dos médicos brasileiros inscritos desistiram do programa. O trabalho Demografia Médica 2018 mostra que 79,2% dos médicos recém-graduados têm preferência por trabalhar em hospitais, enquanto só 28,3% citam unidades básicas de saúde (a questão permitia múltipla escolha).
Quem acha isso normal, uma coisa natural na relação de oferta e procura do mercado de trabalho, não conhece a essência dos programas de saúde da família, centrados na pessoa, não na doença. O rodízio de médicos não dá tempo de estabelecer relação entre o profissional e as famílias, não permite entender os hábitos de vida, alimentação ou de higiene dos pacientes e a realidade de suas comunidades.
Aí é que entrava a especialização dos cubanos na medicina preventiva. A formação médica em Cuba e o sistema de saúde se baseiam em atenção primária, prevenção e muito contato com a comunidade. Os médicos cubanos são educados com o conceito de internacionalismo, de solidariedade e que, como parte de sua formação, devem trabalhar em missões nos lugares mais remotos, para onde outros médicos não vão.
Ao fim, a Guerra Ideológica Nacional parece importar mais do que Marias, Jõoes e Cauãs receberem atendimento no posto de saúde. Pelo menos até esta segunda, a quatro dias do fim do prazo do edital do Mais Médicos, os números são esses: 17 médicos cubanos foram embora, 18 médicos brasileiros se inscreveram no programa e apenas duas se apresentaram nas unidades de saúde da família.
É ‘menos médicos’, ainda.
LEIA TAMBÉM
Quem perde sem os cubanos em Gravataí
O que os pacientes da periferia achavam dos cubanos? Assista
LEIA TAMBÉM
OPINIÃO | Menos médicos: mande a coerência para Cuba!