3º NEURÔNIO

Os juros, outra vez!

“Brasil garante aos rentistas taxa real perto de 8% ao ano sem risco e com liquidez imediata”. Recomendamos o artigo do economista André Lara Resende, publicado pelo Valor Econômico


Richard Feynman, laureado com o Nobel de física, gênio inconteste, considerado um dos maiores professores de todos os tempos, tinha, como todo iconoclasta, outros interesses além da física – era percussionista. Quando veio ao Brasil, no início dos anos 1950, dar aulas para um seleto grupo de alunos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, costumava se infiltrar nos ensaios da bateria de uma escola de samba.

Como conta em “Sure You’re Joking, Mr Feynman”, costumava atravessar o ritmo, o que levava o diretor da bateria a interromper e exclamar: o americano, outra vez! Pois bem, peço emprestada a exclamação do diretor da bateria: os juros, outra vez, ameaçam a retomada do desenvolvimento.

O tema é árido, sei bem, mas da mais alta relevância. Insisto em tentar despi-lo da roupagem tecnocrática que o torna inacessível. Sejamos o mais simples e direto possível. Vamos aos fatos. Desde o início de 2021, o Banco Central elevou a taxa básica de juros de 2,75% para 13,75% hoje. São 11 pontos de percentagem.

A dívida pública interna, cujo nome completo é Dívida Pública Mobiliária Federal interna, DPMFi, em setembro deste ano de 2022, era de R$ 5,5 trilhões, ou aproximadamente 75% do PIB. Esta é a chamada dívida bruta. Dela devem ser deduzidas as reservas internacionais, detidas pelo Banco Central, para chegar à dívida líquida de aproximadamente 50% do PIB, mas é a dívida bruta que passou a ser a referência para os analistas preocupados com a sua sustentabilidade. Embora seja evidente que o valor em caixa deva ser deduzido da dívida bruta para se chegar à sustentabilidade do endividamento de qualquer entidade, os profetas do abismo fiscal conseguiram tornar a dívida bruta a referência para a sua “sustentabilidade”. As aspas são propositais, pois o conceito em relação ao endividamento interno, em moeda nacional de um país com moeda fiduciária, não tem definição clara.

Há endividamentos de todas as magnitudes, muitos países com dívidas superiores ao PIB, alguns com até mesmo mais de duas vezes o PIB, sem que tenham se tornado insustentáveis. Mas este não é o tema desse artigo, que pretende ser o mais simples e direto possível. Voltemos aos juros.

Desde que o Banco Central passou a elevar a taxa básica, o custo médio de emissão da dívida, segundo o Relatório Anual da Dívida Pública do Tesouro Nacional, passou da mínima histórica de 4,44% ao final de 2020, para 8,49% em 2021. Ainda não há dados publicados para o ano de 2022, mas com certeza, dada a contínua elevação da taxa básica, deve ter sido ainda mais alto. Como afirma o relatório do Tesouro, “os indicadores de custo médio da dívida acompanharam o movimento da taxa básica Selic e seus reflexos sobre a curva de juros doméstica”. Paremos aqui um instante. O Banco Central fixa a taxa básica Selic, que como reconhece o relatório do Tesouro, é refletida – o correto seria dizer que determina – toda a estrutura da curva de juros e o custo da dívida. Quanto custou a dívida nesses últimos anos?

Os juros pagos aos detentores da dívida, o custo médio da dívida para o Tesouro passou de 7,15% em 2020, para 8,9% em 2021 e está em 10,8% neste ano de 2022. O custo médio acompanha de perto o custo de emissão, ou de rolagem da dívida, porque uma parte expressiva da dívida, perto de 40%, é indexada à taxa básica e o prazo médio da dívida é relativamente curto, apenas quatro anos. Mas não nos deixemos, como prometido, entrar em tecnicalidades. Fato é que a elevação da taxa básica pelo Banco Central nos últimos três anos, custou ao Tesouro (8,9% – 7,15%) = 1,75% do PIB em 2021 e (10,8% – 7,15%) = 3,65% do PIB em 2022.

A “PEC da Transição”, que autorizou gastos acima do teto num valor de até R$ 169 bilhões, por isso chamada pela “Folha de S. Paulo” de “PEC da gastança” e pela CNN de “PEC do estouro”, representa algo próximo de 2,2% do PIB. É um pouco superior ao custo adicional da dívida, devido à elevação da taxa básica pelo Banco Central, em 2021 e bem inferior ao custo adicional da dívida, pelo mesmo motivo, em 2022. Sem entrar no mérito das despesas autorizadas, deve-se lembrar que grande parte delas é para garantir o valor das transferências em R$ 600 e o auxílio de R$ 150 a famílias com crianças até seis anos de idade, o programa assistencialista que tem apoio praticamente unânime no país.

Criado originalmente pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, foi expandido como o Bolsa Família nos governos do PT, mantido nos governos Temer e Bolsonaro e compromisso de campanha de praticamente todos os candidatos à presidência em 2022. São gastos públicos, efetivamente uma injeção de recursos na economia. Exatamente como é também o adicional de juros do serviço da dívida.

O pagamento de juros sobre a dívida é um gasto público como qualquer outro, uma injeção de recursos na economia. A diferença é ser contabilizado como despesas não-primárias e não ser computado para o teto dos gastos. A contabilidade orçamentária foca nos gastos primários e, sintomaticamente, exclui o serviço da dívida do teto dos gastos.

A ênfase nos gastos primários e a exclusão dos juros sobre a dívida do teto dos gastos, cujo valor quase nunca é mencionado, estão baseadas no pressuposto de que o serviço da dívida estaria fora do controle do governo. Seria dado por condições do mercado. Falso, como reconhece o relatório do Tesouro. A taxa básica de juros fixada pelo Banco Central é o principal determinante do custo da dívida, logo a ação do Banco Central é o principal determinante das despesas não primárias do Estado.

Os gastos aprovados pela PEC, além das transferências do bolsa família, irão recompor recursos para a saúde, a educação, a cultura, a ciência e a tecnologia. Já o serviço da dívida, os juros pagos nos títulos do Tesouro, vão para os seus detentores. Quem são esses detentores da dívida? Voltemos ao Relatório do Tesouro. Lá está que 53,6% da dívida é detida por instituições financeiras e fundos de investimentos. O restante é distribuído entre fundos de Previdência, 22,7%, seguradoras, 4,0%, o próprio governo, 4,3%, e não residentes, 9,2%. Ou seja, enquanto as despesas autorizadas pela PEC vão em grande parte para a população necessitada, via transferências, serviços de saúde, educação e saneamento, o serviço da dívida vai primordialmente para o sistema financeiro e os mais afortunados que tiveram renda e foram capazes de poupar.

O aumento dos gastos públicos pode efetivamente provocar inflação. Gastos públicos são demanda por bens e serviços que, quando a economia está próxima do pleno emprego, pode pressionar a capacidade instalada, provocar déficits nas contas externas e elevar a inflação. Esta seria uma inflação de demanda. Mais uma vez sem entrar em tecnicalidades, a inflação não é um fenômeno único.

A inflação de hoje, provavelmente em toda parte, mas com certeza no Brasil, não é de demanda. É fruto da desorganização da produção durante a pandemia e da alta dos preços de energia devido ao conflito na Ucrânia. Por isso, a inflação aqui cedeu com a redução dos impostos sobre os derivados de petróleo, não por causa da alta dos juros básicos. Esta é uma afirmação passível de ser contestada, dado que não há como comprovar causalidade, mas o Banco Central começou a subir os juros há dois anos e a inflação só deu sinais de arrefecimento com a desoneração fiscal de 2022. Como observou uma matéria do “The Economist”, uma revista conservadora e expoente da ortodoxia econômica, na edição de final de outubro de 2022, o grupo de países que mais agressivamente subiram as taxas de juros depois da pandemia, Brasil, Chile, Hungria, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Peru e Polônia, que a revista chamou de “Hikelandia”, terra dos altistas, numa tradução livre, tiveram um desaquecimento da economia em relação aos demais países. Já a inflação média continuou teimosamente alta, elevou-se 3.5 pontos de percentagem desde março de 2022. Ao contrário do que se poderia prever, a diferença entre a inflação do grupo dos altistas e a dos demais países parece ter aumentado, não diminuído.

O Brasil tem hoje a taxa básica de juros real mais alta do mundo. Com a Selic de 13.75% e uma inflação anual de 5,9%, o juro real básico é de quase 7,5%. Não apenas é a mais alta taxa real do mundo, como é mais do dobro da do segundo colocado neste triste concurso, o Chile. Para efeito de comparação, a taxa de inflação nos EUA é superior a 9% ao ano, mas a taxa básica só agora se aproxima de 4% ao ano. A taxa real ainda é, assim, altamente negativa. O mesmo vale para a Europa, a Inglaterra e o Japão, todos com taxas básicas reais negativas. No mundo hoje, só o Brasil garante aos rentistas uma taxa real perto de 8% ao ano sem risco e com liquidez imediata. Sem risco, sim, pois a dívida pública de um país com moeda fiduciária e um Estado institucionalizado não tem risco de crédito. Pode ter risco político, mas não tem risco de crédito.

Como reconheceu há alguns meses um renomado gestor de ativos financeiros, sócio durante muitos anos do ministro Paulo Guedes, não há investimento real que se justifique com um retorno real desta magnitude. Num mundo onde é praticamente impossível garantir retornos positivos sem alto risco, é uma excrescência que inviabiliza o investimento. Sem investimentos reais, isto é, na expansão da produtividade e da capacidade instalada, não há retomada do crescimento que se sustente, nem conversão possível para uma economia produtiva descarbonizada.

As despesas públicas, sejam elas primárias ou vinculadas ao serviço da dívida, expandem a demanda agregada e podem vir a pressionar a inflação. Pode-se compreender que ambos fossem motivo de crítica, mas protestar contra os gastos autorizados pela PEC e simultaneamente defender a manutenção das absurdas taxas de juros fixadas pelo Banco Central desafia a lógica. São dois pesos e duas medidas. O gasto primário, para atender necessidades básicas da população carente, seria inflacionário, mas o gasto com o serviço da dívida, com o bolsa rentistas, não. Seria importante ouvir a justificativa dos economistas autodenominados liberais, assim como de seus porta-vozes que pontificam na mídia, para esta distinção. Enquanto isso só nos resta exclamar como o diretor da bateria do Feynman: os juros, outra vez!

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