Perdão, leitores, caso vocês existam. Esta crônica é a coisa mais tosca que já escrevi. Mas, infelizmente, acho que ela é necessária. O que pra qualquer um, com dois neurônios, é uma piada grotesca, pra essa gentalha é argumento.
Sei que ao chamar crentes em geral de gentalha, vão dizer que estou sendo desrespeitoso. Deixe eu esclarecer um detalhe: os crentes, como pessoas, têm todo o meu respeito; como intelectuais, nenhum. Se eles não percebem a diferença entre essas posturas, me parece que estou diante de mais uma prova de que tenho razão.
1.
– A Terra é redonda como uma laranja.
– A Terra é plana. Meu pai me disse. Meu avô me disse. Meu bisavô me disse. Eles conhecem o mundo, já foram até Alegrete. É tudo plano.
– O que você vem fazer na escola, se não quer aprender?
– Eu quero aprender. Mas você não tá ensinando, tá destruindo as certezas de minha família, detonando nossa visão de mundo.
– Entendi. Você acha que a família é quem educa. A escola só informa conteúdo.
– Isso mesmo.
– Mas estou informando: a Terra é redonda.
– Não, não. Isso não é informação, é heresia.
2.
– A Terra gira em torno do Sol.
– Como é que é? Todo mundo tá careca de saber: é o Sol e os planetas que giram em torno da Terra. Nós somos o centro do universo. Por que Deus nos criaria à sua imagem e semelhança se não fosse assim?
– Olha, a Terra gira em torno do Sol – ela e os planetas. Mais: nem nosso sistema solar está no centro da galáxia, sem falar que nossa galáxia é só uma entre bilhões. Isso são fatos. Quanto a Deus ter criado assim ou assado é assunto pra você resolver com Ele, diretamente, ou com os teólogos, que espremem os miolos pra fazer a realidade caber dentro de suas convicções.
– Você só tem de informar objetivamente os conhecimentos. Não tem que bagunçar o que meu pai e minha mãe disseram que eu devo pensar e achar do mundo.
– Pra variar, estou dando informações objetivas. Não estou discutindo impressões.
– Quero ver onde essa objetividade das tuas informações vai parar quando meu pai chegar com uns amigos parrudos do Frota.
3.
– O homem e o macaco descendem de um mesmo ancestral.
– Peraí, eu descendo de Adão e Eva. E eles foram feitos à imagem e semelhança de Deus. Se você quer descender de macacos, é problema teu e da tua mãe.
– Os cientistas têm inumeráveis provas de que o homem evoluiu até chegar ao que é hoje.
– Não é o que a Bíblia diz.
– Os cientistas e historiadores também têm inumeráveis provas da origem histórica da Bíblia.
– Você tá querendo dizer que ela não é a palavra de Deus?
– Não. Apenas dei uma informação. Há provas confirmando esta informação.
– Pode enfiar essas provas naquele lugar. Deus tá comigo e ninguém mexe com Ele.
4.
– Vamos estudar os dinossauros?
– Os dinossauros não existiram, professor.
– Como não existiram?
– Foram inventados pelo cinema.
– Quem disse isso?
– Se na Bíblia, quando se fala da Arca de Noé, não se menciona dinossauros, é prova de que não existiam.
– Os tatus não são mencionados, nem os quatis, nem os graxains…
– Tá no etc.
– E por que os dinossauros não estão no etc.?
– São grandes demais. Um bicho desses não ficaria fora da lista.
– Olha, os dinossauros existiram muito antes do homem.
– Como muito? Se o mundo foi criado em seis dias, não pode ser muito.
– O que a gente faz com todas as provas encontradas pelos cientistas?
– Se o senhor insistir com essas provas, vou contar pro meu pai e o senhor vai pra rua por doutrinação antirreligiosa.
– Você já ouviu falar em interpretação de texto?
– Claro, é coisa de comunista.
5.
– Bandido bom é bandido morto, professor.
– Por quê?
– Ora, se matarmos todas as pessoas más, sobram apenas as boas e aí o mundo entra nos eixos.
– Foi o que Deus fez e não deu certo.
– Como?!
– Ué, você não vive me esfregando a Bíblia no nariz?
– Se Deus fez não pode ter dado errado.
– Deus mandou o Dilúvio pra acabar com todos os maus e salvou Noé e a família, os únicos bons. Aí a família do Noé cresceu e se multiplicou e hoje vivemos na mesma merda de antes do Dilúvio. Pela lógica, matar todo mundo não parece ser uma solução, né?
– Mas, mas, mas…
– Se você fosse esperto, ia me dizer que Deus criou o homem com livre arbítrio, daí que o homem faz o que quer sem que Ele seja responsável.
– Isso, isso! Essa foi por pouco!
– Antes do Dilúvio o homem tinha o mesmo livre arbítrio e Deus perdeu os tamancos, como se tivesse se arrependido de criar o homem como criou. Tem mais: se criou à sua imagem e semelhança, não pode reclamar de bandidos.
– O senhor tá distorcendo as palavras do Senhor.
– É você que não está suportando as contradições do Senhor.
– Comunista!
Ernani Ssó é escritor, vive em Porto Alegre. Colabora com os sites Coletiva Net e Sul21, e virou colaborador fixo do Seguinte: (A carica do colunista na capa do site é do Cado)