LUTO

Paula Rego, a feminista que lutava de pincel na mão

Paula Rego tinha 87 anos

A famosa pintora portuguesa morreu esta quarta-feira, 8 de junho, aos 87 anos. Deixa um legado valioso e uma lição no feminino. Recomendamos o artigo de Daniel Vidal, publicado pelo site português NIT


Em 1952, a jovem Paula Rego deixou Portugal e o regime de Salazar e partiu em busca de liberdade e conhecimento em Londres, onde estudou na prestigiada Slade School of Fine Art. Por lá ficou e trabalhou, até se tornar numa das mais famosas artistas plásticas portuguesas, reconhecida mundialmente pelas suas pinturas que não raras vezes encaixavam num género classificado como a beleza do grotesco.

Inspirada em temas humanistas, acabava por se deixar levar pelo ambiente dos contos tradicionais e das fábulas para contar as suas histórias. Aos poucos, cimentou a sua fama em Portugal e pelo mundo fora.

Por cá, foi condecorada com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. No Reino Unido, onde viveu toda a vida, foi ordenada Dama por Isabel II, ainda em 2010. Tornava-se, à época, apenas a quarta pintora a receber essa distinção.

No final de 2021, surpreendeu tudo e todos ao inaugurar pessoalmente a sua exposição “The Forgotten” na Victoria Miro Gallery. Meses antes, infetada com Covid-19, temeu-se pela sua saúde, mas acabaria por recuperar. Debilitada, resistiu, até esta quarta-feira, 8 de junho.

– É com imensa tristeza que anunciamos a morte da artista britânica, nascida em Portugal, a Dama Paula Rego, com 87 anos – revelou a galeria Victoria Miro.

– Morreu pacificamente durante esta manhã, na sequência de uma doença súbita, na sua casa no norte de Londres, rodeada pela sua família.

Sempre interventiva, em 2019, a artista portuguesa demarcava a sua posição num tema crucial, o aborto. Perante as recentes leis de criminalização da prática, que iam então sendo aprovadas em alguns estados norte-americanos, Rego classificava-as como “um retrocesso perigoso e grotesco”.

– [A mulher] irá fazê-lo num lugar sem segurança para a sua saúde, se estiver desesperada, e não conseguir que um médico o faça. É assim que tem acontecido desde o início dos tempos. Portanto, se 25 homens no Alabama a considerarem uma criminosa, isso só aumentará o seu sofrimento.

Essa não é, de todo, uma luta recente na vida de Paula Rego, uma reconhecida feminista, cujas convicções se refletiam nas suas obras. Essa sensibilidade para o sofrimento e luta das mulheres foi se aguçando ainda durante a adolescência, nas páginas dos livros de Simone de Beauvoir.

– Rego revolucionou a forma como as vidas e as histórias das mulheres passam para o formato visual – explicou à “BBC” o diretor do Tate Britan, Alex Farquharson.

Paula Rego foi, aliás, peça fundamental na campanha pela descriminalização do aborto em Portugal. A decisão foi colocada nas mãos dos portugueses em 1998 e após o aceso debate público — que culminou na vitória do não por uma margem mínima de 51 para 49 por cento —, a artista decidiu usar a sua arma para lançar o seu melhor argumento a discussão.

Criou então oito gravuras, telas a óleo, que ficaram conhecidas pela série Aborto.

– Excecionalmente, Rego, que nunca reproduz pinturas em forma gráfica, criou uma série de gravuras após as pinturas, numa decisão política motivada pelo desejo de difundir as suas fortes convicções sobre o assunto – explicou sobre as gravuras a leiloeira Christie’s, na antecipação de um leilão que ocorreu em março.

Uma das gravuras


Nelas, Rego retratou várias figuras femininas em ambientes desconfortáveis, de feições doridas, envergonhadas, marginalizadas. A pintora chegou a descrever a série como um dos trabalhos que mais a orgulhava. Eventualmente, o aborto viria a ser legalizado num novo referendo, em 2007.

– [A Paula Rego] demonstra uma inteligência emocional e uma perfeita compreensão do corpo das mulheres e da sua relação com o corpo – referiu Elena Crippa, a curadora da sua exposição no Tate Britain.

– Foi das primeiras a explorar estes tabus, estas questões pessoas e a experiência de como as mulheres estão constrangidas.

– Tento obter justiça para as mulheres, pelo menos através das imagens. Também alguma vingança – explicou a própria pintora.

Sobre a série Aborto, disse que pretendia “sublinhar o medo, a dor e o perigo de um aborto ilegal”, que é o “recurso das mulheres desesperadas”.

– É errado criminalizar as mulheres.

Numa das suas primeiras pinturas, feitas nos anos 50, quando tinha apenas 15 anos, retratava uma jovem entre dois homens. Chamou-lhe Interrogação e foi uma das obras inéditas apresentadas na exibição no Tate Britain.

– Representa uma mulher a ser torturada por dois homens – notou a curadora.

– Desde cedo que a Paula demonstrou uma extraordinária imaginação e empatia. Sempre que ouvia falar de injustiças e abusos, ela respondia através do seu trabalho.

Muitas dessas representações carregavam críticas e retratos da realidade repressiva vivida em Portugal. Sobretudo as mulheres passaram a ser, nas suas obras, heroínas, sobreviventes, mesmo quando retratadas como vítimas de todos os horrores. Quando os temas se tornavam demasiado difíceis, Rego recorria às alegorias e transformava as personagens em animais.

Uma das suas séries mais famosas é Dog Women, que retrata as mulheres em poses e comportamentos animalescos. São “retratos pouco elogiosos da feminilidade” mas que “oferecem uma crueza” que retrata as mulheres longe da versão idealizada do olhar masculino.

“Dog Woman”, 1994


Essa série, explicou a própria mais tarde, inspirou-se na relação com o marido, que morreu de esclerose múltipla em 1988.

– É sobre o amor que eu tinha por ele – revelou, antes de explicar que usou como modelo a mulher que tomava conta de Victor Willing.

– Ela sou eu. Não gosto de fazer autorretratos, mas ela é como um autorretrato. Ela era a dog woman.

– A Paula leva-nos a sítios desconfortáveis. O [Karl] Jung chamava-lhe a Sombra. São áreas tabu, onde o amor e a crueldade se tocam, onde as nossas ambições e medos vivem – nota Crippa.

– É exatamente aí que ela nos leva e, contudo, somos atraídos por isso com uma compaixão infinita. Ela leva-nos numa jornada de empatia.

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