Ex-vice-prefeita, ex-vereadora e ocupante de altos cargos em Gravataí, Cachoeirinha e interior gaúcho, Loreny Bitencourt faleceu aos 72 anos, deixando como principal legado o seu jeito de ser. O Seguinte: acompanhou o velório e traz a palavra de familiares e políticos. Nas duas cidades, prefeitos decretaram luto oficial de três dias
Minha última lembrança de Maria Loreny Bitencourt da Silva diz muito sobre a personalidade da advogada, ex-prefeita, ex-vereadora e ocupante de altos cargos públicos em Gravataí, Cachoeirinha e interior gaúcho, falecida aos 72 anos, na madrugada desta quarta, em decorrência de câncer.
Era dia 10 de junho do ano passado, e Marcel van Hattem (Novo) flanava paparicado por empresários e políticos em uma edição do Almoçando com a Acigra, no Alvi-Rubro.
O deputado federal fazia a vez de garoto propaganda da Reforma da Previdência enviada por Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional e se associava ao liberalismo anos 80 do ‘posto Ipiranga’ Paulo Guedes ao defender a ‘Poupança Garantida’, o regime de capitalização – aquele inspirado no Chile (onde 8 a cada 10 aposentados recebem menos de um salário mínimo) – depois arquivado pelos congressistas.
Reportei assim, no artigo A ’Vaza Jato’ mudou cardápio em Gravataí, onde ela aparece em vídeo:
A pergunta perfeita veio de Loreny Bitencourt, vice prefeita nos anos 80, ex-procuradora do município e professora aposentada: o Congresso vai combater os privilégios, ou os mesmos de sempre pagarão a conta dos altos salários dos três poderes?
Na resposta, van Hattem travou um diálogo com a interlocutora:
– Com que idade a senhora se aposentou?
– 54 e com 35 de contribuição.
– Muito jovem. No Japão professores tem aposentadoria aos 65 anos e ganhando um terço do salário.
– E qual o salário lá e aqui?
O deputado explicou ter feito a referência para saudar a cultura de poupança dos japoneses ao longo da vida:
– De uma aposentadoria aos 54 para uma sobrevida até 82, é muito tempo sem contribuição. É uma conta que não fecha nos regimes geral e público – argumentou, citando que no Brasil os 20% ‘mais ricos’, como “juízes, promotores, políticos e até o não tão ricos, no teto do regime geral” consomem 41% dos recursos da Previdência e os ‘mais pobres’, “aqueles que a esquerda gosta tanto de dizer que defende”, 3%.
– A Poupança Garantida é o caminho. Não dá para acreditar no estado gerindo o dinheiro das pessoas – disse, ao ir embora pedindo “mais tempo para estudar melhor” a pergunta do Seguinte: sobre a garantia de transição do atual sistema para a capitalização, que no Chile custou mais de 100% do PIB para arcar com aposentadorias já existentes e fazer os aportes para os trabalhadores que já contribuíram para o INSS no atual sistema.
Assim era Loreny, que embasbacou muitos por sua corajosa intervenção mesmo em um ambiente adverso. Chata, para alguns poucos. Imprescindível, para muitos.
Ela foi velada nesta tarde sob uma coroa de discursos que, nas rodas de políticos e familiares, invariavelmente remetiam ao apelido de “Dama de Ferro”, alcunha herdada de Margaret Thatcher, mais pela firmeza, do que pela preocupação social da conservadora primeira ministra inglesa.
– Meu escudo, minha inspiração. Uma mãe maravilhosa, uma fortaleza nessa luta de seis anos contra a doença, tempo no qual eu sentia medo dessa hora: de enfrentar o mundo sem ela. Muitos que estão aqui dizem o mesmo, que ela fazia com que se sentissem protegidos – descreveu, salgando as palavras em lágrimas, Luis Carlos Borda Jr., 41, filho único, advogado inspirado na mãe que o criou desde os 10 anos, após a separação do pai, Luis Borda.
– Não pediu nem pensão. Disse: deixa comigo. Ela era assim – contou, lembrando que Loreny, até a doença avançar e precisar de longas internações nos últimos meses, ainda morar sozinha e, no Natal, ir para ceia dirigindo o próprio carro.
– Ela só queria mais um ano para conviver com a neta – lamentou, narrando passagens de afeto entre a avó e a pequena Sarah, de dois anos e nove meses, um “sonho realizado” de Loreny, que deixa, além do filho único, a nora Scheila e os irmãos Laura, Antônio ‘Leo’ Itamar e Terezinha.
– Ela foi ela até o fim: teimou o quanto pode contra a doença – resume Laura, que recebia parentes e amigos na sua funerária, a Coração Eterno.
– Morreu administrando, mandando. Ficou 30 dias no hospital e comandando tudo – sorriu, antes de embargar a voz, o irmão Leo.
– Nunca se queixou de nada, queria muito viver. Morreu nos ensinando, como sempre fez.
Políticos também renderam homenagens àquela que foi eleita vereadora na segunda eleição com mulheres vitoriosas nas urnas: depois de Adelaide Link, nos anos 60, Loreny assumiu cadeira na Câmara de Gravataí em 82, ao lado de Mercedes Basler e Marta Porto. Também vereador naquela legislatura, o atual prefeito Marco Alba (MDB) recorda a convivência:
– Ela fazia barulho! E com qualidade, coerência e ética. Não fugia do debate, mas sempre com conteúdo. Era preparadíssima.
Marco lembra que, após aquilo que chamo de a ‘I Guerra Política Aldeana’, quando o prefeito Abílio dos Santos brigou com ‘Os Oliveiras’, Dorival e seus herdeiros políticos, abilistas tentaram, sem sucesso, atrair para o governo Loreny e o ex-deputado federal Zaire Nunes, de quem ela era a grande conselheira.
– Loreny se tornou vice do (José) Mota e foi a grande avalista da eleição. Ele era um cara popular nas vilas, ela representava mais o Centro.
Colega do governo Mota (1989-92), o ex-vereador José Amaro Hilgert (PDT) transmitiu o respeito dos trabalhistas, também manifestado em nota assinada pela presidente Anabel Lorenzi no Facebook:
– Mulher de fibra, proba, lutadora. À época assumiu a secretaria mais importante para o PDT: a Educação.
Quando saiu da secretaria, e o próprio Mota acumulou a Educação, concorreu a deputada estadual e foi coordenadora da 28ª Delegacia de Ensino, hoje CRE.
No governo Edir Oliveira (1992-96) foi procuradora e acompanhou o político também na Secretaria Estadual do Trabalho, no governo Antônio Britto.
– Tinha muita voz ativa. Um exemplo para mulheres na política. E era muito leal. Ou estava junto, ou não. Se não lhe agradava, saía, não ficava conspirando – recorda o ex-prefeito, que ilustra o ‘jeito Loreny de ser’ com a saída dela do PTB, quando já era estrela na Prefeitura de Cachoeirinha e o partido sofreu uma intervenção.
– Enfrentou o Sérgio Zambiasi!
Em Cachoeirinha Loreny foi secretária dos governos Valdecir Mucillo (1997-2000), José Stédile (2001-2008) e Vicente Pires (2009-2012). Na reeleição de Stédile, em 2004, foi a principal articuladora da indicação do petebista Felisberto Xavier para vice do petista, história recordada por Vicente no velório.
– Só me ajudou, ajudou nossos governos. A Loreny era garantia de segurança como procuradora – resumiu, emocionado, e lembrando a primeira vez que a viu, duelando ao microfone com Neuza Canabarro em uma assembléia do Cpers, no Gigantinho, em 1986.
– Tinhas opiniões fortes e atrás de muitas decisões, às vezes duras, havia um enorme coração, ao qual tive o privilégio de conhecer. Vai em paz, amiga – postou no Facebook o ex-prefeito José Stédile.
O atual prefeito Miki Breier também foi ao velório, fez uma postagem no Twitter e decretou luto oficial de três dias, mesma homenagem prestada por Marco Alba em Gravataí.
– É uma perda irreparável. Deu muito de seu saber e inteligência na vida pública e na construção partidária. Fica um vazio de sua opinião forte – enviou WhatsApp Mário Bruck, presidente do PSB gaúcho, partido do qual Loreny era dirigente estadual:
Paulo Silveira, presidente municipal dos socialistas, lembrou durante o velório de sua relação com Loreny:
– Era minha conselheira. A grande incentivadora de minha candidatura a prefeito. Dizia que eu lembrava o Mota, em cujo governo foi a secretária responsável pela revolução educacional em Gravataí, construindo o maior número de salas de aula da história. Era uma mulher além do seu tempo na luta pela justiça social – disse o vereador, que em 2018 homenageou Loreny com o título de cidadã honorária.
O último cargo que a professora aposentada ocupou foi a Procuradoria Geral da Prefeitura de Triunfo, até em 2018, pelo agravamento da doença, se afastar para ficar mais próxima da família.
E assim foram as conversas, até o sepultamento. Cada um com sua palavra de afeto, mas também com a memória de algum bom debate. Quem a conheceu sabe que muito do gosto de Loreny pelas pessoas restava em testar a grandeza de cada um, na qual a subserviência e o ‘sim senhor’, ou ‘sim senhora’, não encontram guarida.
Ao fim, adeus Loreny: com a coragem de opinar, foste o escudo de muitos.