A quarta vítima da COVID-19 em Gravataí não é uma estatística: tem um nome, uma história, uma família. É Alceu Pereira, 63 anos. O pedreiro, que morava sozinho no Parque Florido, gostava de pescaria e de dançar na domingueira do Veterano, lutou por quase duas semanas contra a virulência do novo coronavírus. Foi entubado, usou cloroquina, mas não resistiu ao ataque do SARS-CoV-2 a diferentes órgãos. Deixa quatro filhos e seis netos.
– O pai tinha medo do vírus e estava em casa desde março. Apenas um familiar tinha contato com ele. O sepultamos em caixão fechado, sem poder se despedir, ou mesmo vê-lo – lamenta a filha Aline Soares Pereira, 35 anos, que altruisticamente procurou o Seguinte: após ler As mortes sem rosto da COVID 19 em Gravataí, artigo que escrevi sobre o estigma da doença, que parece fazer com que familiares não queiram falar sobre a perda de seus entes queridos.
– Quero contar nossa história para alertar as pessoas: o vírus existe, e é pior do que mostram na TV, porque quando você tem um familiar infectado, além do sofrimento e isolamento do doente, nem no desespero lhe dão informações e os próprios médicos admitem que estão aprendendo a lidar com a doença.
Conforme a vendedora, a suspeita é de que o pai tenha contraído o vírus de um familiar com quem tinha contato, e que precisou voltar a trabalhar quando foram retomadas as atividades econômicas não essenciais.
– O pai não estava saindo. Não o víamos desde março.
As comorbidades que Alceu tinha eram a hipertensão e diabetes, ambos controlados por medicamentos que tomava, conforme a filha.
– O pai era forte, sadio. Era pedreiro! Você nunca imagina que a pessoa vai entrar caminhando em um hospital e sair enrolado em plásticos para um caixão fechado e um velório apenas com poucos familiares.
A filha conta que Alceu procurou atendimento no Hospital Dom João Becker pela tarde do domingo 10, com febre e dores na garganta e no corpo. A pressão e a diabetes apresentavam alterações, uma tomografia também, mas a 1h de segunda recebeu alta com a recomendação de ficar em quarentena domiciliar.
– Informaram que não havia testes disponíveis.
Terça, com os sintomas complementares de diarréia, vômito e perda de apetite, Alceu voltou ao HDJB e foi medicado com paracetamol, tamiflu e amoxilina, relata Aline. Novamente foi liberado sem passar por testagem para COVID-19.
– Quarta ele ligou pedindo ajuda porque sentia falta de ar.
Um familiar levou Alceu para o hospital ao meio dia e ele foi internado às 15h. Apenas às 22h, o hospital informou que o estado do pedreiro era grave. Ele precisou ser colocado em um respirador, até ser transferido durante a madrugada de quinta para o Clínicas, em Porto Alegre.
– A dificuldade de ter informações em Gravataí se repetiu em Porto Alegre. Já estávamos procurando advogado para tentar judicialmente saber como o pai estava. Às 10h da quinta nos informaram que o estado era gravíssimo.
Por volta do meio dia, a equipe médica do clínicas consultou a família por WhatsApp sobre o uso da cloroquina.
– Estávamos desesperados e autorizamos. Assinamos um termo de responsabilidade – conta Aline.
Alceu usou o medicamento experimental entre sexta e segunda, mas a detecção de alterações cardíacas levou à suspensão do tratamento.
– Órgãos começaram a ser atingidos. Os rins pararam e ele precisou de hemodiálise por quase uma semana. Como a oxigenação não estava boa, foi preciso deitá-lo de bruços para entubar.
A esperança da família aumentou no domingo.
– A médica fez uma videochamada e disse que, apesar da febre ter voltado, era gratificante para os médicos ver a reação dele. Ela contou que reduziram a sedação, ele ficou muito agitado, mas tentariam novamente tirá-lo do respirador. “Quando chegou estava mais perto da morte, hoje está mais perto de ir para casa”, ela disse.
Às 5h30 da terça, 26, a equipe médica do Clínicas comunicou o falecimento de Alceu, após embolia pulmonar seguida de parada cardiorespiratória.
– Não é uma gripe qualquer. Apelo a quem não está acreditando no vírus: ao não se cuidar, você pode estar colaborando para uma tragédia em outra família. O pai era uma pessoa forte. Imagina então outros idosos ou pessoas mais debilitadas! Partiu sem que pudéssemos lhe dar um beijo, sem que uma família gigante e seus tantos amigos pudessem ao menos se abraçar no velório – emociona-se Aline, que, com seu depoimento, mostra que as vítimas da COVID-19 em Gravataí têm nome, história, família.
Rosto, ainda não. A família pediu para que não fossem publicadas fotos de Alceu.
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