RAFAEL MARTINELLI

Plano de Drenagem de Gravataí revela o óbvio: enchente não é tragédia, é planejamento público historicamente ausente; o GPS e os pobres de sempre 

Quando a água recua e os eventos climáticos extremos restam num ontem que parece cada vez mais distante na velocidade desse nosso tempo, falar sobre drenagem urbana pode soar técnico e impalpável para muitos. Mas em Gravataí, onde as águas têm endereço certo quando transbordam, esse debate não só é urgente como precisa ser — e está sendo, mesmo que ainda para poucos interessados — público.

O Plano Diretor de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais Urbanas (PDDrU), encomendado pelo prefeito Luiz Zaffalon (PSDB), é, mais do que um documento técnico, uma oportunidade histórica para que a cidade reveja sua relação com as águas — e com os que mais sofrem com elas: os pobres de sempre.

Esse grupo não é abstrato. Tem nome, rosto e CEP. Estão no Caça e Pesca, na Vila Rica, na COHAB C, no Novo Mundo e em tantas outras áreas onde a urbanização avançou sobre várzeas sem infraestrutura, sem planejamento e, principalmente, sem o olhar prioritário do poder público. Nas últimas décadas, meio século, a cidade cresceu sobre os rios e não ao lado deles. Os alagamentos, então, não são acidentes da natureza, mas resultados da negligência e da desigualdade estrutural.

O PDDrU, lançado com seminário público no final de junho, escancara essa realidade. Ainda não tinha tratado sobre isso no Seguinte: — e aqui vai uma mea culpa. É assunto chato, poucos devem discordar. E caça-cliques, ou votos, também não é.

O diagnóstico feito pelo consórcio Concremat-Rhama, consultoria contratada pela prefeitura, traça um mapa detalhado da vulnerabilidade hidrológica de Gravataí. Cinco grandes bacias — Barnabé, Demétrio, Brigadeira, Gravataí 1 e 2 — foram estudadas com precisão técnica: imagens LiDAR, modelagens hidrológicas e análises socioambientais. O que se viu foi o retrato do caos previsto: quase 5 mil edificações em Áreas de Preservação Permanente (APPs), dezenas de milhares de moradores em áreas de risco e um histórico de inundações que se repete como uma maldição: 2013, 2015, 2016, 2017, 2019, 2020, 2023, 2024…

E tudo isso pode ser só o começo. As projeções apontam que, sem intervenções efetivas, a frequência e intensidade dos eventos extremos vão crescer. Por isso, o plano é tão crucial. Ele não apenas propõe soluções para conter cheias e definir zonas de risco; ele é a base para o novo Plano Diretor de Gravataí, que está sendo atualizado após quase três décadas de remendos. Planejar agora é decidir se a cidade vai continuar lavando seus pátios, casas, móveis, e sua história com as lágrimas dos mesmos ou se vai escrever um futuro menos desigual.

Mas os desafios são imensos. Só em obras previstas no PDDrU, estima-se um investimento de meio bilhão de reais. Para se ter uma ideia, todo o investimento feito pela gestão do prefeito Luiz Zaffalon nos últimos quatro anos em saúde, infraestrutura e educação foi de R$ 250 milhões — metade desse valor.

A boa notícia é que existe dinheiro no horizonte. O novo PAC prevê R$ 2,9 bilhões para obras de resiliência climática na Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, incluindo casas de bombas, diques e microbarragens que ajudarão tanto em tempos de enchente quanto de seca. Gravataí, nesse pacote, deve receber um dique de quase R$ 100 milhões no Caça e Pesca.

Mas há um problema: os prazos. As obras previstas pelo PAC devem ser concluídas apenas em 2030 — um tempo longo demais para quem já está com água na porta. A prefeitura tenta acelerar as soluções por outros caminhos, como a busca de recursos do Funrigs, o fundo estadual de reconstrução, para viabilizar outro dique, dessa vez na Vila Rica. Ainda assim, sem integração entre o que está sendo planejado regionalmente e o que está sendo desenhado no PDDrU, corre-se o risco de sobreposição de esforços ou, pior, de obras que não dialogam entre si.

A responsabilidade, portanto, é coletiva — e política. O prefeito reconhece os avanços e os limites: há investimentos em desassoreamento e manutenção, mas ainda há muito por fazer. Zaffa coloca o plano como prioridade em seu segundo governo e isso é bom. Mas, mais do que anúncios e boas intenções, é preciso ação coordenada, participação social e, sobretudo, orçamento garantido.

O seminário e a consulta pública do PDDrU foram um primeiro passo importante. Dar transparência ao diagnóstico, escutar a população, incluir a ciência no centro das decisões — tudo isso é fundamental. Mas de nada adianta mapear as tragédias se elas seguirem se repetindo nos mesmos endereços e com os mesmos rostos. Gravataí precisa decidir se continuará sendo a cidade que expulsa os pobres para as margens do risco ou se, finalmente, aprenderá a planejar com justiça e responsabilidade.

Ao fim, o PDDrU pode — e deve — ser o ponto de virada. Não apenas por prever obras, mas por propor uma nova lógica de ocupação e convivência com a água. Uma lógica que respeite o território, que enfrente a desigualdade histórica e que tire os “pobres de sempre” da linha de frente da catástrofe. Que os tire de uma várzea imaginária e os coloque, enfim, no centro do planejamento urbano. Porque enquanto houver inundações seletivas, não haverá justiça hídrica — nem cidade digna para todos.

Ainda volto ao tema, detalhando o PDDrU. Este primeiro artigo é para celebrar que, ao menos, temos um GPS para enfrentar a tempestade, mesmo que apenas com um guarda-chuva na mão.

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