Os limites legais e políticos dessa ausência e o que diz a Constituição sobre perda de cargo por falta às sessões. Compartilhamos o artigo do jornalista e cientista político Jorge Mizael, publicado pelo ICL Notícias
É compatível com o exercício do mandato parlamentar residir fora do país? Essa pergunta, aparentemente inusitada, ganha contornos urgentes diante do caso de Eduardo Bolsonaro, deputado federal eleito por São Paulo, que atualmente vive nos Estados Unidos com sua família. Ao deixar o Brasil, mesmo sem renunciar ao cargo, Eduardo desafia os limites da representação parlamentar e suscita um debate necessário – e até incômodo – sobre a legitimidade do exercício remoto da função legislativa. O caso inaugura uma reflexão política, jurídica e eleitoral sobre os deveres de um deputado e as garantias mínimas que o eleitorado deveria ter ao depositar votos em um candidato.
A repercussão política e institucional ainda é tímida, mas inevitavelmente crescente, especialmente após “reassumir” o seu mandato na última semana (20/07). A situação é emblemática: Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente e um dos nomes mais votados nas eleições de 2022, com mais de 741 mil votos, está ausente do Brasil enquanto formalmente ocupa uma cadeira no Congresso Nacional.

A função de um deputado e o princípio da representação
A Constituição Federal de 1988 confere ao deputado federal a nobre missão de representar o povo na formulação das leis e na fiscalização dos atos do Poder Executivo. A atuação parlamentar é, por essência, presencial e articuladora: envolve negociações, construção de consensos, atuação em comissões, votação de projetos e fiscalização das políticas públicas. Com a pandemia de COVID-19, o Congresso brasileiro se destacou como o primeiro parlamento do mundo a implementar um sistema de deliberação remota, uma inovação que garantiu a continuidade dos trabalhos em um momento crítico. Essa medida foi concebida como excepcional e transitória. Desde então, a participação virtual de parlamentares na Câmara dos Deputados é regida por meio de Atos da Mesa Diretora — como os editados por Rodrigo Maia, Arthur Lira e agora Hugo Motta — que flexibilizam a atuação remota sem oferecer segurança jurídica ou critérios claros para a sua aplicabilidade. É legítimo manter um parlamentar em “home office” permanente, especialmente se tiver fora do país? Essa é uma discussão que exige sinceridade institucional e participação direta do eleitor brasileiro.
O mandato parlamentar, por mais digital que se torne, continua sendo uma função que requer inserção territorial e sensibilidade ao contexto político, social e econômico do eleitorado. No caso de São Paulo, o problema é ainda mais grave. O estado mais populoso do país e com o maior número de eleitores enfrenta uma anomalia representativa: dois de seus deputados federais mais votados — Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli — encontram-se, simultaneamente, fora do Brasil por embates judiciais. Juntos, eles somaram mais de 1,6 milhão de votos em 2022. Esse contingente eleitoral está, na prática, órfão de representação ativa.
O que diz a Constituição sobre perda de mandato?
A Constituição Federal de 1988 é clara ao estabelecer as hipóteses que podem levar um deputado federal à perda do mandato. O artigo 55 prevê seis situações distintas, entre elas a violação das proibições do artigo 54, como manter contratos indevidos com o poder público; a quebra de decoro parlamentar; a perda dos direitos políticos; a cassação do diploma pela Justiça Eleitoral; a condenação criminal definitiva; e, de forma objetiva e mensurável, a ausência injustificada a um terço das sessões ordinárias de cada sessão legislativa. O inciso III do artigo 55 é especialmente relevante para o caso de Eduardo Bolsonaro. Esse dispositivo estabelece que o parlamentar que faltar a mais de um terço das sessões ordinárias, sem licença ou missão autorizada, deve perder o mandato. A norma é direta, mas sua aplicação depende da apuração formal dessas ausências e da ausência de justificativas válidas reconhecidas pela Mesa Diretora.
Considerando o calendário legislativo de 2025, que vai de 2 de fevereiro a 22 de dezembro, a Câmara dos Deputados deverá realizar aproximadamente 114 sessões ordinárias de Plenário ao longo do ano. Esse número resulta da estimativa de três sessões por semana útil, descontados feriados nacionais e recessos regimentais. Conforme o inciso III do artigo 55 da Constituição, o parlamentar que faltar, sem justificativa aceita, a mais de um terço dessas sessões — ou seja, 38 ausências injustificadas — incorre em hipótese de perda automática do mandato, mediante declaração da Mesa Diretora. No caso de Eduardo Bolsonaro, se mantiver ausência sistemática sem licença ou missão oficial, esse limite pode ser alcançado ao longo do segundo semestre de 2025. A depender da frequência de faltas semanais, o parlamentar poderá atingir esse patamar em aproximadamente 13 semanas de ausências consecutivas — tornando a situação juridicamente crítica e institucionalmente insustentável, caso não haja providências administrativas e políticas. Em resumo, a depender da quantidade de sessões convocadas e abertas na Câmara no segundo semestre de 2025, a partir de novembro, Eduardo Bolsonaro provavelmente já terá atingido faltas suficientes para perder o cargo e jogar no lixo mais de 700 mil votos que jurou honrar.
A Constituição também define o procedimento para efetivar a perda de mandato. Nos casos do inciso III, como ausência injustificada às sessões ordinárias, a competência para declarar a perda é da própria Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, conforme estabelece o §3º do artigo 55. A medida pode ser tomada de ofício ou mediante provocação de qualquer parlamentar, ou partido político com representação no Congresso Nacional. Trata-se de um rito mais célere e objetivo do que o necessário em casos de quebra de decoro ou condenações criminais, que exigem votação em Plenário por maioria absoluta. Ainda assim, a Constituição assegura ao parlamentar o direito à ampla defesa antes da decisão final. A apuração das faltas é feita com base no registro oficial de presença nas sessões e no exame das justificativas eventualmente apresentadas. Se essas justificativas forem inexistentes ou insuficientes, a Constituição impõe um desfecho inequívoco: a perda do mandato por abandono das funções legislativas.
Entre a lei e a ilegitimidade: o custo político do distanciamento
A residência fora do país por parte de um deputado federal eleito carrega um peso simbólico e político profundo. No caso de Eduardo Bolsonaro, essa distância geográfica é acompanhada de uma atuação que, em vez de se alinhar às demandas do eleitorado paulista ou ao funcionamento cotidiano do Congresso Nacional, concentra-se em promover tensionamentos políticos por meio de plataformas digitais, entrevistas ideologizadas e negociações com figuras estrangeiras. Entre seus atos mais controversos está o estímulo ao alinhamento automático com o governo de Donald Trump, e ao chamado “tarifaço”.
Se for normalizado, esse distanciamento pode abrir precedentes perigosos, enfraquecer o vínculo entre o mandato popular e a presença física nas instâncias de poder constituído, comprometendo o próprio espírito da função pública em uma democracia representativa.
O que está em jogo é a própria lógica da democracia representativa
A permanência de Eduardo Bolsonaro no cargo de deputado federal, mesmo residindo fora do país, expõe uma distorção grave da lógica da democracia representativa. O eleitorado de São Paulo encontra-se abandonado por um parlamentar que escolheu priorizar agendas pessoais e articulações internacionais, enquanto se distancia das responsabilidades institucionais de seu mandato. Enquanto ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados, Eduardo deve ser tratado como um deputado em pleno exercício do cargo — e, por isso mesmo, deve ser fiscalizado, cobrado e submetido às leis e aos deveres inerentes à função. Nenhum brasileiro, especialmente um parlamentar, tem legitimidade para conspirar contra o Brasil e os seus poderes constitucionais. O mandato não é uma extensão de interesses individuais: é uma delegação coletiva, resultado da confiança de milhares de cidadãos, e exige reciprocidade em forma de presença, compromisso e respeito à Constituição.
O caso de Eduardo Bolsonaro coloca a Câmara dos Deputados diante de uma encruzilhada institucional. A omissão diante do afastamento físico e político de um parlamentar de projeção nacional pode consolidar um precedente perigoso de desresponsabilização e esvaziamento da representação popular. Se o Parlamento permanecer inerte, arrisca se tornar cúmplice de uma erosão progressiva das normas que sustentam o pacto democrático. Por outro lado, agir com firmeza — nos parâmetros da legalidade e assegurando o direito à ampla defesa — seria um gesto inequívoco de respeito às instituições, à Constituição Federal e à vontade popular. O que está em jogo é a integridade de um modelo de representação que depende da presença ativa dos seus membros. Agora cabe à Câmara decidir: será guardiã da democracia ou mais um elo frouxo na corrente de retrocessos institucionais que ameaçam a legitimidade da política brasileira?