A campanha deflagrada pelo prefeito Luiz Zaffalon para construir um novo hospital em Gravataí é, sim, um movimento de gestão pública. Mas é também — e talvez principalmente — um teste moral, político e histórico para a elite econômica da Região Metropolitana.
O que está em curso é mais do que um projeto de R$ 300 milhões. É a tentativa de corrigir um apagão estrutural regional que já dura décadas. Gravataí, cidade com quase 300 mil habitantes, tem apenas 190 leitos disponíveis no Hospital Dom João Becker, hospital criado para atender 50 mil pessoas, e que há décadas opera muito além do limite — mesmo com todas as modernizações recentes na UTI e emergência a partir da compra pela Santa Casa.
Segundo a OMS, seriam necessários mais de 800 leitos para atender adequadamente a população atual. Em 2024, o HDJB realizou quase 11 mil cirurgias, atendeu mais de 142 mil pessoas em consultas ambulatoriais e recebeu quase 9 mil internações. E isso sem nunca fechar as portas — nem na pandemia, nem nas enchentes de maio, nem durante as crises hospitalares em Canoas, Cachoeirinha ou Alvorada.
Ainda assim, o sistema está à beira de um colapso. E ele não é isolado.
O diagnóstico alarmante apresentado por Gilberto Barichello, presidente do Grupo Hospitalar Conceição, reforça o cenário sombrio: o Brasil perdeu 40 mil leitos na última década, mil deles no Rio Grande do Sul. Três ventos sopram a tempestade perfeita: as sequelas da Covid, os efeitos das enchentes e o negacionismo vacinal. “Hoje não se busca só leito, mas UTI”, alertou Barichello. E não se encontra.
Diante desse quadro, Zaffa escolheu um caminho possível, ainda que ousado: mobilizar o empresariado local e regional, utilizando a Lei do Pró-Hospitais, que permite a destinação de até 5% do ICMS devido por empresas para obras em hospitais públicos e filantrópicos.
A meta inicial é viabilizar o Hospital Bárbara Maix, projeto da Santa Casa que prevê nove andares e 114 leitos de internação e 10 leitos de UTI, com foco em internações pediátricas, obstetrícia, UTI neonatal e atendimento de convênios e SUS. A nova estrutura será ligada fisicamente ao HDJB, na Rua Dr. Luiz Bastos do Prado, em terreno doado pelas Irmãs da Congregação Imaculado Coração de Maria.
A inspiração também é conhecida: o Hospital Nora Teixeira, inaugurado em 2023 em Porto Alegre, administrado também pela Santa Casa. O custo? R$ 284 milhões. A maior parte — R$ 230 milhões — veio de doações da empresária Nora Teixeira e de seu marido, Alexandre Grendene. Foi uma ação privada com impacto público imensurável, que mudou o cenário da saúde na Capital e deu um exemplo que extrapola a filantropia.
A questão que fica, portanto, é: a elite econômica da Região Metropolitana — e especialmente de Gravataí, onde se financia compra até de estádio de futebol — estará à altura desse momento? Incluo neste desafio a elite econômica da Região Metropolitana porque pelo menos 2 a cada 10 pacientes atendidos pela rede de saúde pública em Gravataí são de municípios do entorno. Na prática, um novo hospital operaria de forma regional.
O prefeito já deu o primeiro passo ao articular com Mathias Kisslinger Rodrigues, empresário do setor imobiliário e ex-presidente da Fundação Iberê Camargo, para ser o ‘embaixador’ da captação de recursos. Mas o desafio é coletivo. Afinal, Gravataí não é apenas a quarta economia gaúcha, polo industrial e logístico. É base para empresas que prosperaram com incentivos públicos, terrenos doados, créditos de ICMS, isenções, estrutura urbana construída com recursos públicos. É a ‘Terra da GM’ e outras gigantes.
A cidade e seus trabalhadores ajudaram essas empresas a crescer. Agora, é hora de pedir ajuda de volta.
A elite empresarial precisa ser protagonista de um pacto social — e a construção de um hospital que salve vidas não é só um investimento com retorno social: é uma demonstração de que há, sim, compromisso com o lugar que sustentou seus lucros.
A história cobrará de cada um — empresários, políticos, sociedade civil — sua posição neste momento necessário. A omissão, aqui, é também uma escolha.
Ao fim, Zaffa deu a largada. Foi corajoso. Arrisca até se queimar politicamente, caso a campanha seja um fracasso. O tempo dirá como vai responder nossa elite empresarial. Tempo presente, dada a urgência. Que essa elite não caiba na frase de Churchill sobre os americanos: “sempre farão a coisa certa, depois de esgotarem todas as outras possibilidades”.
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