Associo-me ao artigo Por que anistia para golpistas é inconstitucional, do brilhante jurista, professor e advogado gaúcho Lenio Luiz Streck, publicado em O Globo. Sigamos no texto:
Está em discussão a concessão de anistia aos condenados e acusados pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito. A pergunta de 1 milhão de leis é: se aprovada, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode declarar a lei anistiante como inconstitucional?
A resposta é afirmativa. Por vários motivos. Em primeiro lugar, há que rejeitar argumentos (existem muitos divulgados na mídia) de que uma lei de anistia não seria inconstitucional porque a Constituição Federal (CF) não a proíbe. Esse parece ser o principal argumento a favor da tese da anistia. Trata-se de uma tese que no Direito chamamos de textualista, pela qual “o que a Constituição não proíbe, permite”. Isso quer dizer que o legislador, toda vez que a CF não estabelecer o contrário ou não disser algo sobre o tema, poderia aprovar qualquer tipo de lei. Ora, pensar assim é fazer pouco-caso da Constituição. É pensar que a CF é uma espécie de simples código.
Um exemplo singelo derruba os argumentos textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista — que defende a constitucionalidade de uma lei de anistia aos golpistas — por certo responderia que “a lei não proíbe ursos”. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de transitar no parque. Essa é a melhor maneira de saber o conceito de “interpretação textualista”.
Em segundo lugar, temos o precedente Daniel Silveira. Não era proibido expressamente pela Constituição que o presidente Jair Bolsonaro concedesse indulto. Mas o STF, baseado em forte doutrina e na interpretação sistemática, entendeu que o ato contrariou a Constituição. Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de eventual lei anistiando golpistas. Há uma passagem em que se lê:
— Indulto que pretende atentar, insuflar e incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório a uma cláusula pétrea prevista no art. 60 da CF.
Isso é o que se chama “proibição implícita”. Igualzinha à vedação de ursos. Não precisa ser dito. Está implícita a proibição. Chama-se a isso de hermenêutica da função da lei.
Que é proibido anistiar a quem comete crime de golpe de Estado já foi percebido na Argentina, pelos tribunais e pela doutrina (Bidart Campos). Por aqui, setores do Direito tentam aplicar uma espécie de “textualismo seletivo”.
Ainda sobre o “precedente Daniel Silveira”, consta no acórdão, no voto do ministro Alexandre de Moraes:
— Seria possível o STF aceitar indulto coletivo para todos aqueles que eventualmente vierem a ser condenados pelos atos de 8 de janeiro, atentados contra a própria democracia, contra a própria Constituição?
E a resposta:
— Obviamente que não. Isso está implícito na Constituição.
Aliás, no caso Silveira, o STF usa mais de 40 vezes a tese de que há vedações implícitas na Constituição ao direito de anistia e indulto.
No nosso exemplo, parece óbvio que, proibidos cães, ursos não são permitidos. E por quê? Porque onde está escrito cães, leia-se “animais perigosos”. E onde está escrito democracia e Estado Democrático de Direito, leia-se “ninguém pode usar a democracia contra si mesma”. Nenhuma Constituição admitirá perdão (indulto, anistia) para quem atenta contra o Estado Democrático. Tudo porque a Constituição não é um oximoro. Não dá para “contentar-se de contentamento”. Na poesia, dá; no Direito, não!