CARLOS WAGNER

Por que não tocou o alarme nas mortes por bebida batizada com metanol?

Não foi um exagero. Foi uma prudência do ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, 77 anos, colocar a Polícia Federal (PF) no caso da adulteração com metanol de garrafas de gim, uísque e vodca que já matou cinco pessoas e deixou 27 gravemente doentes na cidade de São Paulo. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), 50 anos, manifestou desconforto com a presença dos federais no caso. Alegando que não existem indícios da participação do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa que domina o mercado ilegal de metanol. Portanto, a participação da PF é desnecessária e o caso pode ser resolvido pelas polícias Civil e Militar e os agentes da inspeção sanitária do Estado de São de Paulo. O principal motivo da participação da PF no caso não tem a ver com a presença ou não do PCC. Mas com o fato de que a adulteração de bebidas com metanol é feita em pequenas fábricas espalhadas pelo país inteiro. E a PF tem autoridade para atuar em todo o território nacional. Lembro que, graças à popularização do comércio pela internet, a bebida adulterada consumida em São Paulo pode ser procedente de qualquer canto do imenso território brasileiro. Só para citar: em Pernambuco, no início da semana, foi notícia a investigação de três casos (duas mortes e uma pessoa que perdeu a visão) de bebidas alteradas pelo metanol.

A disputa do governador paulista com governo federal acontece porque Tarcísio é um possível candidato da oposição para concorrer à Presidência da República em 2026 contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos, que buscará a reeleição. A disputa faz parte do jogo político. No começo da nossa conversa, me posicionei a favor da participação da PF no caso porque conheço profundamente a geografia da falsificação de bebidas no Brasil. Vamos conversar sobre o assunto. Falsificar bebida com metanol é o item mais letal do vasto cardápio de produtos usados para adulterar os destilados. Mas não é o mais popular, como mostram as estatísticas. Anualmente, são registrados cerca de 20 casos no Brasil, sendo que a maioria são moradores de rua com graves problemas de alcoolismo que ingerem o combustível. Desta vez, os mortos e feridos eram clientes de bares localizados em endereços caros da cidade de São Paulo – há matérias sobre o caso nos jornais. Como é que as garrafas adulteradas com metanol foram infiltradas entre os produtos que abastecem estes bares? Geralmente, os proprietários destes endereços elegantes usam fornecedores que conhecem de longa data, justamente para evitar problemas. Além de saber como estas garrafas foram parar nos depósitos dos fornecedores, o mais importante é descobrir onde fica a fabriqueta clandestina que produziu as bebidas. Fiz muitas matérias com fabricantes de bebidas ilegais. O perfil do crime que aconteceu em São Paulo é que ele parece ter sido cometido por um principiante no mercado de falsificação de bebidas. A maioria deles sabe que o uso do metanol causa um dano enorme à saúde do consumidor e, pela repercussão dos casos, em última instância acaba colocando a polícia no encalço dos fabricantes, causado uma enorme confusão no mercado de bebidas falsificadas. Claro que, por ser ilegal, ninguém tem números confiáveis sobre o tamanho deste mercado. Posso afirmar que é grande e conta com dois principais abastecedores ilegais. Um deles, que inclui vinhos, uísque, gim, vodca e rum, é abastecido com produtos comprados nos países vizinhos e no Caribe, que entram no Brasil de maneira ilegal, sem pagar as taxas alfandegárias, praticando um crime chamado de “descaminho”. Estes produtos acabam abastecendo o pequeno comércio de bebidas. Vez ou outra, a PF desmonta uma quadrilha envolvida com o descaminho. Geralmente, a imprensa faz uma confusão entre o descaminho e o contrabando. Descaminho é quando são trazidas ilegalmente, sem o pagamento de impostos, mercadorias que podem ser consumidas no Brasil. Contrabando é quando se traz ilegalmente produtos cujo consumo é proibido, como agrotóxicos e remédios.

O segundo abastecedor ilegal do mercado de bebidas no Brasil é resultado de uma falsificação que nasceu nos anos 70 no Paraguai, que ficou conhecida nas redações dos jornais como a “venda de gato por lebre”. Eu explico. As garrafas de marcas famosas são preenchidas com bebidas baratas. Lembro que nas décadas de 80 e 90 existiam muitas pequenas engarrafadoras ilegais de uísque, gim e vodca estabelecidas nas cidades paraguaias próximas à fronteira com o Brasil. Inclusive, havia um mercado ilegal de venda de vasilhames de bebidas famosas para os fabricantes paraguaios. No início da década de 90, tive uma longa conversa com um garçom que trabalhava em bares da região. Ele contou como o esquema funcionava. Logo que o cliente chegava, era servido com a bebida verdadeira. À medida que o tempo passava, era substituída pela falsificada e o consumidor dificilmente notava a troca. Trabalhei em redação de jornal de 1979 a 2014 fazendo reportagens investigativas, a maioria nas fronteiras do Brasil com os países vizinhos. Posso dizer que os controles do mercado de bebidas por parte das autoridades federais, estaduais e municipais brasileiras foram muito aperfeiçoados. Em parte, graças às novas tecnologias. Esta vigilância diminuiu o tamanho do mercado ilegal de bebidas. Nos dias atuais, o grande interesse do PCC, do Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e de outras organizações criminosas regionais é o mercado de cigarros falsificados do Paraguai para o Brasil, que fatura, anualmente, R$ 9 bilhões. Lembro que, na década de 90, assisti e fiz reportagens sobre o nascimento do mercado ilegal de cigarros no Paraguai. Testemunhei uma vasta quantidade de insumos que nada têm a ver com o fumo ser misturada na feitura dos cigarros. Atualmente, os fabricantes de cigarros falsificados paraguaios se tornaram grandes empresários no seu país e ocupam cargos parlamentares e executivos.

Para arrematar a nossa conversa. Por conta da história do metanol, eu conversei com um dos fabricantes de cigarros falsificados em Guayrá, cidade do Paraguai separada pelo Lago de Itaipu do município paranaense de Guairá. O que ouvi dele é que a história do metanol foi ruim para os negócios ilegais na fronteira, porque atraiu a atenção das autoridades brasileiras para a região. Acredita que o caso seja isolado. E que será resolvido. Acrescentou: “Quanto mais rápido terminar esta história, melhor para todo mundo”. A história dos produtos falsificados e de baixa qualidade trazidos ilegalmente do Paraguai para o Brasil é antiga e complicada. Tenho feito reportagens e livros sobre o assunto, como o País-Bandido, crime tipo exportação. São dezenas de negócios ilegais que mexem com somas milionárias. A história do metanol usado para falsificar uísque, gim e vodca é pequena e muito barulhenta por envolver mortes e danos físicos irreversíveis às vítimas. O caso não tem o perfil dos crimes cometidos na fronteira. Mas a grande movimentação de agentes policiais, da Receita Federal e de fiscais sanitários no caso prejudica o mercado ilegal de mercadorias na fronteira. É simples assim.

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