RAFAEL MARTINELLI

Projeto que reserva vagas de creches para pobres de Gravataí permite o necessário debate sobre o pai do Camaro e a doméstica do Rincão; O ‘espírito do tempo’

Cláudio Ávila é o autor do projeto que reserva 20% das vagas em creches para famílias pobres

Apoio o projeto de Cláudio Ávila que prevê reserva de 20% das vagas em creches públicas de Gravataí para famílias pobres. É inconstitucional? Desconfio. Mas a justificativa do vereador – que é um brilhante advogado – para o PL 54/2023 permite um debate há muito adiado: aquele sobre o absurdo de um pai de Camaro largar a criança na creche municipal, enquanto a doméstica do Rincão da Madalena paga a menina vizinha para cuidar da criança quando vai trabalhar.

Reproduzo a argumentação de Ávila e, abaixo, sigo.

“(…)

Segundo dados públicos e estudos de renomadas entidades, no Brasil, apenas 25% dos que mais precisam ocupam as vagas disponíveis nas creches e nas escolas de educação infantil. Com a definição de acesso universal na Educação Infantil e a decisão do STF no sentido de que as creches também devem ter o acesso universalizado, muitos gestores se eximem de excepcionar o regramento com base na sua realidade.

No caso de Gravataí, segundo dados do TCE/RS, mais de 7 mil vagas deveriam ter sido criadas para zerar o déficit na educação infantil. Missão árdua e quase impossível para um mandato de 4 anos.

O atual grupo político que está na prefeitura, embora várias promessas eleitorais, tiveram um tímido avanço no número de vagas, ao longo de 10 anos. No entanto, o prefeito atual tem feito louváveis esforços para ampliação do número de vagas, porém, com resultados efetivos apenas em médio o longo prazo.

Entretanto, é perceptível que crianças com realidade social estável estão em suma maioria ocupando as vagas. Não há problema legal quanto a isso, mas enquanto não se atende 100% da necessidade social, os mais vulneráveis devem ter lugar de destaque na fila.

Como se sabe, no direito, a própria regra serve de base para excepcionalizar o seu conteúdo mandamental.

O próprio ministério da educação, reconhece, mesmo sendo o acesso universal e imediato, ao estipular a meta de atender a pelo menos 50% das crianças de até 3 anos de idade em creches até 2024, que há necessidade de uma adaptação temporal para o cumprimento da regra.

Assim, os municípios haverão de enfrentar a necessidade de impor um dos princípio basilares da Constituição Brasileira, o Princípio da Dignidade Humana, que nas palavras do Ministro Barroso (2010) pensando a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, explica: “Sua aplicação poderá se dar por subsunção, mediante extração de uma regra concreta de seu enunciado abstrato, mas também mediante ponderação, em caso de colisão com outras normas de igual hierarquia.”.

Portanto, no caso de Gravataí/RS, em vista maciça e notória exclusão dos mais pobres e vulneráveis das vagas das creches e da educação infantil, tendo vista a forma “cega” esculpida na regra geral, é que, em nome da dignidade humana, haverá de ser autorizado o juízo de ponderação até que se atinja a plena universalização.

Não há como tratar desiguais como iguais em um momento de excepcional precariedade, sendo oportuno subsumir, isto é, incluir critérios em algo maior, mais amplo. Como definição jurídica, configura-se a subsunção quando o caso concreto se enquadra à norma legal em abstrato. Dentro da norma geral, a norma abstrata é aquela que conduz a análise do caso específico de um indivíduo, analisando – o em suas circunstâncias, em seus detalhes, visando lhe priorizar, com base no juízo de ponderação, o cumprimento da norma geral.

Nesse sentido, tendo em vista que a maioria absoluta das medidas judiciais com liminares deferidas advém de ações movidas pela defensoria em prol das famílias de maior vulnerabilidade social, para garantir a adequação fática da universalidade, dentro do caminho da sua evolução integral, há de que se reservar ao menos 20% das vagas das creches e da educação aquelas crianças advindas de mães, pais, famílias, abandono e maus tratos, em extrema pobreza e vulnerabilidade social.

Em caso de entendimento jurídico diverso, que seja aprovada e sancionada a Lei, possibilitando a sociedade gravataiense buscar, através de eventual embate judicial, até a última instância, o direito de proteção e prioridade aos mais pobres.

(…)”.

Sigo eu.

Por questão de justiça, tratarei antes sobre a crítica política de Ávila sobre a longa fila das creches, para depois entrar naquele que reputo o debate prioritário: o do Camaro.

Voltemos a dezembro de 2019, em um episódio de rede nacional.

Gravataí foi incluída pelo JN da Globo na lista das cidades que dividiram a promessa de R$ 1 bilhão do governo federal para construção de creches cujas obras não foram concluídas – vítimas todas da ‘construtora do calote’, que conforme noticiei no artigo Gravataí ganha ação de 4 milhões por calote de empresa das creches terá que ressarcir a Prefeitura, caso tribunais superiores confirmem a condenação pela 2ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre.

Gravataí figurava na reportagem do JN como um dos três exemplos globais para o levantamento do site Transparência Brasil, que revelou que, “nos últimos dez anos, de 14 mil obras contratadas com recursos federais, só 44% das escolinhas e creches foram entregues; 18% foram canceladas e 38% não saíram do papel ou estão com obras paradas por uma série de problemas”.

Até o calote da serial killer de Emeis Brasil afora, Gravataí era a cidade gaúcha com mais obras de escolas infantis em andamento, ou projetadas. Seis no total, com previsão de 1,5 mil vagas e investimento de R$ 18 milhões.

O então prefeito Marco Alba precisou construir uma alternativa: após o pinote da construtora, articulou junto ao então ministro chefe da Casa Civil Eliseu Padilha para que o Ministério da Educação editasse uma resolução permitindo à Prefeitura destinar recursos próprios para manter os pagamentos em dia às construtoras contratadas para retomar os serviços.

Assim, a Prefeitura bancaria as obras e depois seria ressarcida pelos repasses do governo federal. E no modelo tradicional, “tijolo e cimento”, como costumava falar Marco, não na estrutura que era tecnologia exclusiva no Brasil da ‘serial killer de Emeis’.

Então, parece-me não somente injusto, mas incorreto, culpar exclusivamente o governo Marco, como o vereador, mesmo sem citar nomes, instiga em sua justificativa – o que, alerto, pode até atrapalhar a aprovação de um bom projeto e enviesar um bom debate.

Até porque a ‘ideologia dos números’ não desvela vilões. Pelo contrário, mostra que, entre 2013 e 2020, nas gestões do ex-prefeito, o número de crianças atendidas pelo município cresceu de 3.038 para 6.557.

Nove fora disputas políticas, vamos agora ao principal: a reserva de vagas para os pobres.

Associo-me à conclusão da justificativa de Ávila: “Em caso de entendimento jurídico diverso, que seja aprovada e sancionada a Lei, possibilitando a sociedade gravataiense buscar, através de eventual embate judicial, até a última instância, o direito de proteção e prioridade aos mais pobres”.

Alguém terá coragem para contestar judicialmente? É um caso análogo à aprovação do projeto que gradualmente proíbe carroças em Gravataí, que poderia ter questionamentos relativos à origem parlamentar, mas não foi contestado por representar uma evolução civilizatória.

Será um teste com potencial além fronteiras submeter a letra fria da lei nacional com o Zeitgeist, o ‘espírito do tempo’, que nos assombra com uma injustiça: no caso aldeano, a desigualdade entre o pai do Camaro e a doméstica do Rincão.

Pode o projeto de Gravataí também criar uma jurisprudência para a mãe que leva a criança de jegue para a creche em Belágua.

Fato é que hoje os municípios tem obrigação com crianças pobres, remediadas ou ricas, devido ao “acesso universal” previsto em 2016 na praticamente infactível Emenda Constitucional 59, que obriga pais a matricular e prefeituras a oferecer as vagas gratuitamente na educação básica, ou seja, dos quatro aos 17 anos.

Para as crianças mais novas, o prazo estabelecido pelo Plano Nacional de Educação é que metade delas tenham vagas disponíveis nas escolas infantis até 2024. O que mais do que dobra a fila.

Ao fim, reputo um bom projeto para um necessário debate. A Câmara de Vereadores poderia aprovar, o prefeito Luiz Zaffalon tornar lei e a gente aguardar o pai do Camaro acionar a justiça, para permitir o debate sobre uma universalização que hoje trata miseráveis e ricos como iguais, em um dos países mais desiguais do mundo.

Nem falei com ele sobre, mas o PL não me parece lacração do ex-menino da Abembra. Ou Ávila não proporia apenas 20%, mas todas as vagas para os pobres.

Vamos ao debate?

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