No Brasil, há alianças que pareceriam improváveis — se não fosse o risco iminente de ver ruir uma das bases da economia nacional. Em Gravataí, o prefeito tucano Luiz Zaffalon, liberal convicto, e o sindicalista lulista Valcir Ascari, o “Quebra-Molas”, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos local, estão juntos numa causa que atravessa ideologias: o apelo por protecionismo à indústria automotiva diante do avanço vertiginoso da BYD e das montadoras chinesas.
Como braço direito da GM, está o prefeito de uma cidade cuja história se confunde com a da General Motors. Desde a instalação da planta em 2000, a GM transformou Gravataí. A arrecadação do município se multiplicou, a cidade subiu no ranking do PIB estadual e se tornou polo industrial de referência nacional.
Como braço esquerdo, está um sindicalista combativo, defensor dos direitos da classe trabalhadora e crítico do modelo neoliberal que, ironicamente, também teme os efeitos da globalização nesse setor.
O que une Zaffa e Quebra-Molas é o temor concreto de que a estratégia da BYD — importar veículos quase prontos (SKD), apenas para finalizá-los no país — atropele empregos e investimentos da indústria nacional. É o fantasma da ‘maquiagem industrial’ assombrando: produzir sem produzir de fato, montar para cumprir tabela.
Não se trata apenas de números ou retórica. Em 2025, Gravataí ainda sente o impacto do layoff na GM, que afetou cerca de mil trabalhadores. Mesmo com a promessa de um novo SUV e investimentos na planta, o alerta está aceso: a concorrência com as marcas chinesas, operando com produtividade superior, mão de obra mais barata e alta capacidade tecnológica, ameaça a espinha dorsal do modelo industrial brasileiro.
O movimento de Zaffa e Quebra-Molas ganha contornos emblemáticos diante da decisão do governo federal, que buscou um meio-termo: rejeitou o pleito da BYD de redução definitiva das alíquotas, mas concedeu isenção temporária de imposto sobre kits CKD e SKD até janeiro de 2026. Um sopro de fôlego para os chineses, mas uma antecipação de proteção para as montadoras tradicionais. Uma ‘solução Brasil’, ao estilo do sindicalista Lula: nem cede tudo, nem nega tudo.
Eis o dilema: a indústria nacional precisa competir com gigantes que chegam com escala global, estrutura consolidada e carros elétricos baratos. A BYD, sozinha, já encosta em marcas tradicionais no ranking de vendas e promete fazer ainda mais estrago quando sua produção for 100% nacionalizada.
Já a defesa da Anfavea — e dos prefeitos e sindicalistas do Sul ao Nordeste — é que essa suposta concorrência desleal pode representar o colapso da cadeia de autopeças, de engenharia e de inovação que levou décadas para ser construída.
Mas há um argumento incômodo vindo da outra margem: e o consumidor? Por que o brasileiro sempre pagou caro por carros com baixa tecnologia?
A carta da BYD expõe o arranhão com precisão: inovação sempre foi tratada como ameaça pelas montadoras tradicionais. Só depois da chegada dos chineses o preço de carros elétricos começou a despencar — em alguns casos, mais de R$ 100 mil.
Esse embate, portanto, não é apenas econômico. Tem reflexos políticos, sociais e ideológicos. O prefeito liberal, que sempre defendeu o livre mercado, agora pede taxação. O sindicalista de esquerda, que sempre combateu o protecionismo dos patrões, agora exige proteção. Ambos, porém, têm razão em um ponto, além do pragmático ‘bairrismo econômico’: o Brasil ainda não está preparado para competir de igual para igual com a China no setor automotivo.
Somos o 78º em produtividade entre 131 países. Nossos custos logísticos, educacionais e tributários sabotam a competitividade. Como competir com uma BYD que já exporta quase 20% de sua produção ao Brasil e monta uma fábrica do zero em tempo recorde?
A resposta talvez esteja menos na blindagem total contra o ‘invasor estrangeiro’ e mais na criação de condições reais para que o Brasil entre no jogo: infraestrutura, qualificação, crédito, planejamento. Enquanto isso, é compreensível — e até necessário — que o país adote medidas transitórias de proteção.
O que não pode é confundir defesa da indústria com manutenção de um modelo ineficiente, caro e pouco inovador. Nem usar o protecionismo como pretexto para eternizar privilégios.
Ao fim, o prefeito liberal e o sindicalista de esquerda estão certos em soar o alarme. Mas será preciso mais do que tarifas para salvar a indústria automotiva brasileira — e a Gravataí da GM. Será preciso reformá-la de verdade. E talvez esse seja o verdadeiro choque que as montadoras tanto temem.
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