“Putin, de fato, acertou na mosca: estamos às beiras de uma Revolução. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado no Asia Times e traduzido por Patricia Zimbres para o 247
Em seu amplo discurso à sessão plenária da 19ª reunião anual do Clube Valdai, o presidente Putin fez nada menos que uma crítica devastadora e detalhada da unipolaridade.
De Shakespeare ao assassinato do General Soleimani; de reflexões sobre a espiritualidade à estrutura da ONU, da Eurásia como o berço da civilização humana à interconexão entre a Iniciativa Cinturão e Rota, a Organização de Cooperação de Xangai e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul; dos perigos nucleares à península periférica da Eurásia, “cega pela crença de que os europeus são melhores que os demais”, o discurso pintou uma tela digna de Brueghel, ilustrando o “marco histórico” com que nos vemos confrontados em meio à “década mais perigosa desde o fim da Segunda Guerra Mundial”.
Putin chegou mesmo a dizer que, nas palavras dos clássicos, “a situação é, em certa medida, revolucionária”, uma vez que “as classes mais ricas não conseguem, e as classes mais pobres não querem mais viver assim”. Então, tudo está em jogo, e o “futuro de uma nova ordem mundial está sendo formado frente a nossos olhos”.
Muito mais que um slogan fácil de pegar sobre o jogo que vem sendo jogado pelo Ocidente, “sanguinário, perigoso e sujo”, o discurso e as intervenções de Putin na sessão de perguntas e respostas que se seguiu devem ser analisados como uma visão coerente do passado, presente e futuro. Aqui, trazemos apenas alguns dos pontos principais:
O mundo vem testemunhando a degradação das instituições mundiais, a erosão do princípio de segurança coletiva e a substituição do direito internacional por “regras”.
“Mesmo no auge da Guerra Fria, ninguém negava a existência da cultura e da arte do Outro. No Ocidente, qualquer ponto de vista alternativo é declarado subversivo”.
“Os nazistas queimavam livros. Agora os pais do “liberalismo” ocidental estão banindo Dostoievsky”.
“Há pelo menos dois “Ocidentes”. O primeiro é tradicional e tem uma rica cultura. O segundo é agressivo e colonial”.
“A Rússia nunca se viu e ainda não se vê como uma inimiga do Ocidente”.
“A Rússia tentou construir relações com o Ocidente e a OTAN – conviver em paz e harmonia. A reposta deles a qualquer cooperação foi ‘não’ “.
“Não precisamos de um ataque nuclear à Ucrânia, que não faria sentido – nem político nem militar”.
“Em parte”, a situação entre a Rússia e a Ucrânia pode ser vista como uma guerra civil”: “Ao criar a Ucrânia, os bolcheviques a dotaram de territórios primordialmente russos – eles deram a ela a Pequena Rússia, toda a região do Mar Negro, o Donbass inteiro. A Ucrânia se desenvolveu como um estado artificial”.
“Ucranianos e russos são um só povo – isso é um fato histórico. A Ucrânia se desenvolveu como um estado artificial. O único país que pode garantir sua soberania é o país que a criou – a Rússia”.
“O mundo unipolar está chegando ao fim. O Ocidente é incapaz de, sozinho, governar o mundo. O mundo enfrenta um marco histórico, ao início da década mais importante desde a Segunda Guerra Mundial”.
“A humanidade tem duas opções: ou continuamos acumulando a carga de problemas que fatalmente irão nos esmagar a todos, ou podemos trabalhar conjuntamente para encontrar soluções”.
O que fazer depois da orgia?
E meio a uma série de discussões absorventes, o cerne na questão em Valdai é seu relatório de 2022, “Um Mundo sem Superpotências” .
A tese central do relatório – eminentemente correta – é que “os Estados Unidos e seus aliados, na verdade, já não desfrutam mais da condição de potência dominante, embora a infraestrutura global que serve a eles ainda esteja em vigor”.
É óbvio que todo esse emaranhado de questões importantes na encruzilhada em que atualmente nos encontramos foram precipitadas pelo fato de a Rússia ter-se tornado a primeira grande potência que, guiada por suas próprias ideias sobre segurança e justiça, optou por descartar as vantagens da ‘paz global’ criada pela única superpotência.
Bem, não se trata exatamente de ‘paz global’, e sim de um ethos mafioso de “quem manda aqui sou eu”. O relatório, de forma bastante diplomática, caracteriza o congelamento do ouro e das reservas de moeda estrangeira russas, e a varredura das propriedades russas no exterior como “jurisdições ocidentais”, “guiadas por conveniência geopolítica, e não pela lei” “caso necessário”.
Na verdade, trata-se de roubo puro e simples, perpetrado à sombra da “ordem mundial baseada em regras”.
O relatório – de forma otimista – prevê o advento de uma espécie de “paz fria”, normalizada como sendo “a melhor solução possível nos dias de hoje – reconhecendo que essa situação não é de modo algum garantida, e que isso “não irá impedir a tão necessária reconstrução do sistema internacional sobre novas bases”.
As bases para o desenvolvimento da multipolaridade foram de fato apresentadas pela pela parceria estratégica Rússia-China apenas três semanas antes das provocações ordenadas pelo império que forçaram a Rússia a lançar a Operação Militar Especial (OME).
Paralelamente, os contornos financeiros da multipolaridade já haviam sido propostos desde pelo menos julho de 2021, em um artigo redigido conjuntamente pelo Professor Michael Hudson e por Radhika Desai.
O relatório Valdai reconhece o papel das potências de médio porte do Sul Global, que “exemplificam a democratização da política internacional”, e que podem “atuar como amortecedores de choques durante períodos turbulentos”. Aqui temos uma referência direta ao papel dos BRICS+ como protagonistas importantes.
No Grande Quadro do tabuleiro de xadrez, a análise tende a ficar mais realista quando se mostra que “o triunfo da ‘única ideia verdadeira’ torna o diálogo efetivo e a concordância com os apoiadores de diferentes visões e valores impossíveis por definição”.
Putin aludiu a isso por diversas vezes em seu discurso. Não há o menor indício de que o Império e seus vassalos venham a se desviar de seu unilateralismo normativo, imposto e carregado de seus próprios valores.
É evidente que a política mundial está começando a “rapidamente retornar a um estado de anarquia baseada na força: apenas o Império do Caos quer impor a anarquia, uma vez que ele se vê totalmente desprovido de instrumentos geopolíticos e geoeconômicos para controlar os países rebeldes além do tsunami das sanções.
O relatório, portanto, está correto ao identificar que o pueril sonho molhado neo-hegeliano do “fim da história”, ao final das contas, trombou contra o muro da própria História: estamos de volta ao padrão de conflitos de larga escala entre centros de poder.
E também é fato que “apenas mudar o ‘operador’, como ocorreu em séculos anteriores” (como quando os Estados Unidos ocuparam o lugar da Grã-Bretanha) “simplesmente não vai funcionar”.
A China talvez acalente o desejo de se tornar o novo xerife, mas a liderança de Pequim, definitivamente, não está interessada. E mesmo que isso viesse a acontecer, o Hegêmona usaria de toda a força para evitá-lo, uma vez que “o sistema inteiro” continua “sob seu controle (principalmente nas finanças e na economia).
Então, a única saída, mais uma vez, seria a multipolaridade – que o relatório descreve, de maneira bastante vaga, como “um mundo sem superpotências”, ainda necessitando “de um sistema de autorregulação, o que implica uma liberdade de ação muito maior, e responsabilidade por essas ações”.
Coisas ainda mais estranhas já aconteceram na História. Nas atuais circunstâncias, estamos mergulhados em um caos de colapso total. Putin, de fato, acertou na mosca: estamos às beiras de uma Revolução.