Se a arte reflete o tempo em que vivemos, Qorpo Santo é um espelho que nos força a encarar um mundo onde lógica e absurdo se confundem. Nascido em Triunfo, RS, em 1829, esse gênio incompreendido já questionava, no século XIX, as contradições humanas que hoje explodem – literalmente – em atos de desespero e radicalismo. Sua obra não era só teatro; era profecia.
Nesta minha segunda coluna no Seguinte:, sigo escrevendo sobre artistas gaúchos.
O absurdo antes do absurdo
Em tempos de “pós-verdade”, onde o real é manipulado ao sabor das narrativas mais convenientes, Qorpo Santo se torna mais relevante do que nunca. Ele enxergava o absurdo no cotidiano de sua época: uma sociedade que sufocava o indivíduo, aprisionava a criatividade e idolatrava a aparência da ordem.
Seus textos, como “Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte”, são desconcertantes porque desconstroem nossas certezas. É um teatro que ecoa o caos das fake news, das polarizações inventadas – sem lógica e de atos como o atentado recente no Supremo, onde uma ideologia doentia levou uma pessoa a se explodir em nome de sua “verdade”. É difícil não pensar que Qorpo Santo já antecipava esses momentos ao explorar o vazio e a desorientação que marcam a todos nós – seres contemporâneos, criaturas da hiperconectividade, das crises globais e das transformações constantes.
Uma sociedade à beira do colapso
Qorpo Santo viveu em uma época de repressão e rigidez moral, mas ele usou sua criatividade como resistência. Diagnosticado como “louco”, escreveu peças que denunciavam o autoritarismo, o egoísmo e a hipocrisia. Hoje, sua obra dialoga com um mundo onde a paranoia e o fanatismo fazem vítimas diariamente, seja pelo extremismo gerado em “ignorâncias coletivas”, alimentadas em grupos de WhatsApp ou, como argumentava Freud, em suas teorias psicanalíticas, por impulsos destrutivos intrínsecos a psique humana.
Seu texto, “Certa Entidade em Busca de Outra”, por exemplo, poderia facilmente ser uma metáfora para o vazio de ideologias rasas ou para a busca frenética por identidade e propósito em um mundo digital, onde o “ser” frequentemente é eclipsado pelo “parecer”.
A coragem de expor o invisível
Enquanto muitos evitam encarar o absurdo, Qorpo Santo o abraçou e o expôs. Sua “Ensiqlopèdia ou Seis meses de uma enfermidade” é um grito de resistência contra a normatização das ideias “anormais”. Assim como ele foi marginalizado por desafiar as convenções, hoje vemos vozes, que resistem a pós-verdade, essa das narrativas “endoidecidas” que mercantilizam a fé e a política, sofrerem por uma intolerância generalizada.
O teatro como reflexo e ação
O teatro de Qorpo Santo não era entretenimento; era denúncia e desconstrução. Em tempos de luta por sanidade mental, como os atuais, seu trabalho nos desafia a pensar: haverá salvação dentro do atual modelo de organização social?
Sua obra não oferece respostas fáceis – e talvez nem seja essa a intenção. O que Qorpo Santo nos deixa é a coragem de perguntar. Em um mundo onde as pessoas explodem por causas doentias, ele nos mostra que o verdadeiro confronto está dentro de cada um de nós, pois todos somos responsáveis, contribuímos na construção deste momento histórico.
Um legado para hoje e sempre
O mundo de Qorpo Santo era tão caótico quanto o nosso, mas ele encontrou na arte um meio de desafiar as convenções e enxergar o que muitos preferiam ignorar. Hoje, seu trabalho nos lembra que o absurdo não está apenas no teatro: está nas ruas, nas redes sociais e nas escolhas diárias que fazemos.
E, mesmo assim, a arte – tão humana quanto o caos – continua sendo um importante instrumento de entendimento e transformação.
Afinal, em tempos que a “pós-verdade” ganha força, o que Qorpo Santo nos ensina é que o absurdo, da vida real, pode ser desconfortável – pode até doer, mas também pode ser uma oportunidade de olhar o mundo com outro olhar. E, quem sabe, encontrar motivação e impulso para construir algo diferente, uma vida e um mundo melhor para todos.