RAFAEL MARTINELLI

Que a nossa solidariedade não seja conivente com os criminosos ambientais

Associo-me ao jornalista Reinaldo Azevedo, no artigo Que a nossa solidariedade não seja conivente com os criminosos ambientais. Sigamos no texto.

O Rio Grande do Sul nem chegou à fase de contabilizar os efeitos da tragédia. A razão é simples. Os desastres ainda estão em curso, o que só faz aumentar a perplexidade. Os brasileiros — e os gaúchos em especial — buscam o fio da esperança, aquela notícia que anuncia o começo do fim do desespero, quando, então, saímos de uma espécie de transe de malignidades. Até agora, nada! O nível do Guaíba pode aumentar de novo em razão da volta das chuvas no Vale do Taquari; a frente fria deve inverter o sentido dos ventos no estuário da Lagoa dos Patos e dificultar o escoamento da água para o mar; a maré vai subir… A dor parece não ter fim. Mas uma hora passa. E como será no ano que vem? E até o fim desta década? E nas seguintes?

Por enquanto, confesso, não estou muito otimista, não. O que venho observando sobre o assunto — para além do atendimento aos desabrigados com dinheiro de emergência, medidas de crédito, providências para o adiamento do pagamento de impostos e da dívida do estado — parece anunciar que há uma disposição enorme em setores consideráveis do país para que se continue a fazer a coisa errada. Por que digo isso?

Deem uma passadinha nas redes sociais. Na seara política, sob o guarda-chuva do bolsonarismo, as mesmas forças, perfis e personagens que compuseram a frente negacionista durante a pandemia e manejaram o discurso golpista se dedicam agora a sabotar os esforços do Estado brasileiro, particularmente os do governo federal, no atendimento às vítimas das cheias. A notável mobilização da população do Estado tem sido manipulada e usada para a construção de um discurso ideológico rasteiro, sintetizado na expressão “civis salvam civis”, como se os órgãos estatais se quedassem na inércia.

Pior: em certos setores da imprensa, há uma adesão tácita a essa falácia por meio da espetacularização da tragédia, que se revela no par antitético “desastre/redenção”, tudo sempre em tom superlativo, subestimando-se, no mais das vezes, os trabalhos coordenados de assistência, inclusive os recursos federais da ordem de muitos bilhões. E olhem que essa é a versão benigna. Há a maligna: vigaristas na pele de colunistas atacam com mais afinco os que pretendem coibir as “fake news” — que prejudicam tanto os trabalhos de resgate como os de doação de dinheiro e víveres — do que aqueles que as propagam. É um lixo moral.

São sinais muito ruins do que pode vir pela frente. Há outros. Façam uma pesquisa e constatem a sequência de desaires que têm colhido o Rio Grande do Sul, com extremos de seca e de aguaceiro, como agora. Vimos na Amazônia os rios a morrer de sede. O Litoral Norte de São Paulo experimentou em um dia a maior chuva da história no país e o segundo maior registro do mundo desde quando se faz tal medição. Já vimos a Bahia afogada. Nada indica, muito pelo contrário, que esse tal “desequilíbrio climático” vá nos deixar dormir em paz.

O custo para atender a população gaúcha é, por enquanto, literalmente incalculável. E é evidente que se estabelece, porque será o correto e necessário, um novo padrão de resposta para os tais “eventos extremos”. Não custa lembrar: o país nunca atendeu, com o ímpeto e o pesar devidos, também aos sem-água. E eles existem aos milhões. O custo é fabuloso. Temos um desafio com o qual não contavam os fanáticos do “estado enxuto” — e não se trata de um trocadilho.

Há outra questão relevante: temos um presidente progressista, de centro-esquerda, que nomeou para o Meio Ambiente uma autoridade de dimensão internacional: Marina Silva. Mas quais são as batalhas que eles têm pela frente e com que Congresso são obrigados a lidar? Quando se analisam os projetos de parlamentares gaúchos de direita, a frequência com que o meio ambiente é um alvo, não um bem a ser preservado, chega a ser assustadora.

Cito os do Estado porque o cataclismo está lá agora. O despropósito é mais amplo. Um levantamento exaustivo, que a imprensa deve aos brasileiros, de projetos de lei e de Propostas de Emendas à Constituição da dita bancada ruralista vai evidenciar que essa gente marca um verdadeiro encontro com dilúvios e desolações.

E podemos avançar: a ideia é que não sobre um só gaúcho sem auxílio. E escrevo de novo: é o que tem de ser feito. Mas quantas são as vítimas das enchentes nos morros e periferias das grandes cidades, que estão a pedir uma reforma urbana? Também elas são dignas da nossa solidariedade e do socorro do Estado. Em vez disso, o que vemos é extrema-direita a demonizar os movimentos em defesa da moradia.

“O que você quer, afinal?” Deixar claro que o país precisa oferecer soluções estruturais para esses problemas; que isso tem um custo elevadíssimo e que a resposta a ser dada vai na contramão de um Congresso que tem se mostrado, até agora, escandalosamente reacionário também em matéria ambiental. A solidariedade ajuda o minorar o sofrimento das vítimas. Mas ela vale até a próxima catástrofe.

Os ciclos de chuva e seca atípicas — além das típicas — vieram para ficar. Silenciaremos, como país, diante daqueles que, por intermédio de suas escolhas políticas e de seus projetos de lei e emendas firmam um compromisso com a infelicidade não só dos contemporâneos, mas também das gerações futuras?

É preciso desnudar a hipocrisia dessa gente. Não podemos, de solidariedade em solidariedade — sempre necessárias —, ser coniventes com criminosos ambientais.

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Receba nossa News

Publicidade