Em boa medida, na sociedade brasileira atual, o cristianismo evangélico é ainda tratado com generalizações. Compartilhamos o artigo de Valdemar Figueredo (Dema), pós-doutorando em sociologia pela USP, doutor em ciência política e em teologia, e pastor da Igreja Batista
Os estereótipos negativos são reforçados no sentido de afirmar que os pastores são ladrões, as ovelhas ignorantes e o rebanho é o principal responsável pela onda neoconservadora no Brasil atual.
Mais recentemente, seguindo a tendência das generalizações, confunde-se o neologismo “bolsonarismo” com evangélicos. Como pano de fundo, as eleições de 2018 em que o eleitorado evangélico teve um papel importante para eleger à Presidência o então candidato Jair Bolsonaro.
Fica suposto que os evangélicos são fanáticos, conservadores, ignorantes ou intolerantes. Ainda que não dito claramente, o comportamento de boa parte da chamada “inteligência brasileira” é o de que quem conhece uma igreja evangélica conhece a todas.
O livro “Povo de Deus“, de Juliano Andrade Spyer, vai no sentido contrário. Não se trata de um religioso se comportando como se estivesse envolvido em disputas proselitistas, mas de um antropólogo interessado em interpretar o fenômeno da crescente presença dos evangélicos no espaço público brasileiro sem resvalar nos preconceitos e estereótipos (SPYER, 2020).
Embora bem fundamentado teoricamente, em diálogo com os principais estudos acadêmicos sobre o cristianismo evangélico, Spyer se propôs a escrever sobre o tema complexo em linguagem fluida tendo como objetivo atingir um público mais amplo que os especialistas universitários. Daí, a sua opção por uma abordagem panorâmica sem as costumeiras delimitações das produções acadêmicas afeitas aos leitores especializados.
Seguramente, o pressuposto central do autor é que quando falamos no cristianismo evangélico no Brasil, lidamos com muitos preconceitos. Na melhor tradição antropológica, quem pretende conhecer determinado objeto de pesquisa deve se aproximar o máximo possível para desmistificar certezas consolidadas e não se contentar com os preconceitos popularizados. No trabalho de Spyer, tão importante quanto as referências bibliográficas foi a sua vivência na pesquisa de campo.
Mesmo a elite escolarizada que sabe que o cristianismo evangélico é formado por múltiplas experiências pessoais, históricas e institucionais que se consubstanciam em uma pluralidade de igrejas, cultiva estereótipos negativos contra essas expressões religiosas/sociais como um tipo de resíduo dos preconceitos contra os pobres.
Elites letradas que fazem generalizações sobre os crentes iletrados consideram a religiosidade dos pobres uma expressão de ignorância.
O livro em questão figura como uma referência importante para entendermos o recente fenômeno do crescimento dos evangélicos no país e suas implicações para as novas configurações religiosas, desnudamento dos enraizados preconceitos de classe e raça, efetivação do Estado de bem-estar informal, além das disputas pelo poder midiático e político.
Importante lembrar que a pesquisa de campo realizada pelos antropólogos não tem a mesmo dinâmica metodológica de outras disciplinas das Ciências Sociais afeitas à reunião de dados e procedimentos quantitativos. A fluidez do texto de Spyer tem a ver com a capacidade de ser generoso para tornar acessível a um amplo público leitor análises bem fundamentadas sobre o fenômeno recente do cristianismo evangélico na sociedade brasileira.
Não devemos insistir na redução da análise da presença dos evangélicos na política como se fosse uma mera expressão neoconservadora da direita. O crescimento das igrejas evangélicas no Brasil atual não tem a ver somente com o campo religioso.
Não basta dizer que o Estado é laico como se isso fosse um mantra com poder para alterar a realidade e desqualificar as representações políticas de setores das igrejas evangélicas. Estruturalmente, para análises mais abrangentes e relevantes, ao tratarmos sobre a relação entre evangélicos e política não podemos desconsiderar os aspectos de classe e desigualdades sociais.
O texto de Spyer sugere que a esquerda demonstra profundas dificuldades para articular um diálogo duradouro que faça sentido para as camadas populares que entendem e se identificam com a teologia da prosperidade.
Quadros políticos que se definem como progressistas, assemelham-se, neste caso, a quadros evangélicos intelectualizados de classe média (presbiterianos, batistas, metodistas etc.) que repelem as noções da teologia da prosperidade com argumentos que resvalam na postura de superioridade moral.
De fato, existe um problema no diálogo entre setores evangélicos e partidos progressistas de esquerda. Por diálogo não estamos nos referindo a alianças a toque de caixa nos períodos eleitorais entre candidaturas de esquerda e cúpulas eclesiásticas que orientam o famigerado “voto de cabresto” (SPYER, 2020, p. 171–177).
Instigados pelo luminoso livro de Spyer, assumimos nas considerações finais um caráter não diretivo, mas propositivo.
Quem e por quais motivos deveria ler “Povo de Deus”?
Recomendo a leitura deste livro aos pesquisadores do campo religioso brasileiro, com destaque para a questão do método. Tratando-se de um grupo marcado pelas pluralidades de ideias teológicas, de estruturas eclesiásticas, de formas de usos dos poderes midiáticos e políticos, é fundamental considerar a pertinência das pesquisas de campo. Não queremos ser taxativos nem sugerir que só o olhar antropológico dá conta do fenômeno, apenas sinalizar que estamos diante de múltiplas experiências sociais e sistemas de crenças que são designadas com o termo “elástico” de evangélicos.
Indico o livro aos evangélicos que vivem a fé em determinada comunidade e podem aperfeiçoar suas percepções a partir do olhar da alteridade. Em outros termos, não se trata, nessa sugestão, de incentivar os embates para questionar as experiências com o sagrado, mas a coragem para pensar nos arranjos das comunidades de fé que se definem como evangélicas. Os evangélicos que lerem este livro poderão adquirir uma visão panorâmica que os leve a concluir que o “familiar” não é necessariamente um aliado e o “estranho” não é necessariamente um inimigo.
Por fim, sugiro a leitura do texto de Spyer aos não evangélicos que observam intrigados o fenômeno do trânsito religioso no país. O fato de desconstruir os estereótipos que giram em torno da identidade política dos evangélicos já é o suficiente para justificar a atenta consulta ao livro. Longe de se converter num manual, a produção de Spyer figura como um excelente livro de entrada para a compreensão do complexo cristianismo evangélico brasileiro.