Você nem deve ter notado que não fui ao seu encontro este ano. Nem poderia me reconhecer né, todo mundo de máscara. Puizé, Urninha amada: entre a Democracia e a Vida, em 2020 votei nesta.
Imagino que você tinha alguma expectativa comigo: um idoso vindo de um relacionamento com aquela velha prima sua, vestida de lona e enorme apetite por cédulas de papel.
Ah, caso ardente aquele, eu e ela recém-saídos da Ditadura, adorava me enfiar nela. Quando ela se aposentou, não tão ágil para pleitos tão intensos, e você surgiu – em plástico reluzente, faiscante de luzinhas, ruidosa nos plins-plins – meu coração teve um sobressalto tecnológico.
A desconfiança inicial, se você seria ou não vulnerável às fraudes, não resistiu às várias eleições que você esteve envolvida. Sua prima também sofria disso e nem por isso deixou de despertar paixões.
Nessa relação promíscua que você tem com qualquer portador de título eleitoral, o problema nunca foi com você, Urna adorada: o problemaço é sempre nós, os eleitores.
Nós e nossas escolhas equivocadas, nós e nossas incertezas e péssimas avaliações dos candidatos. Nós e nossa esperança de um novo Brasil parido das suas inocentes entranhas eletrônicas.
Acho que você compreende a minha ausência: evitei você para sobreviver à pandemia e um dia, vacinado, voltar aos seus bits em 2022.
E você deve intuir que nem só o vírus afastou agora os eleitores de você. A baita abstenção foi por outra doença contagiosa, o desencanto político. Esse que mina o país desde o golpe de 2016, agravado pela infecção direitista de 2018.
Enfim, meu bem: senti falta de você. E isso que desde 2006 só via você pra votar em trânsito. Quer dizer, ia até você como enamorado democrático, não como um fervoroso amante. Amantes da Democracia não se justificam né?
Daqui da minha masmorra quarentenal torço que você saia ilesa e isenta dessas eleições. Que o sufrágio não vire naufrágio e que do seu ventre cibernético saiam eleitos muitos negros e negras, gays e lésbicas e trans, e sobretudo jovens políticos imunes à politicagem e à corrupção.
E torço mais, meu amor: que os primeiros e segundos turnos jamais dêem lugar a coturnos. Eles odeiam urnas adoráveis como você.