RAFAEL MARTINELLI

Reação a fala de Lula revela hipocrisia, arrogância sem lastro e vigarice

Associo-me ao jornalista Reinaldo Azevedo em seu artigo Reação a fala de Lula revela hipocrisia, arrogância sem lastro e vigarice.

Sigamos no texto

A reação dos chamados “mercados” à fala de Lula sobre o déficit zero — ou melhor: não zero —, na entrevista concedida na sexta, só não pode ser chamada de “hipócrita” porque a hipocrisia é uma disposição subjetiva, isto é: depende de um sujeito, de um indivíduo.

Como sabem, apelo com frequência a uma palavra que criei — “uzmercáduz” — para me referir a esse ente que paira, absoluto, sobre a crônica econômica e política. E, à diferença do que pensam muitos, a ironia não alude aos mercados, mas aos que atribuem àquela fantasmagoria ou as suas próprias opiniões (hipótese benevolente) — ou as das fontes influentes, que estão sempre a fazer negócios. Daí deriva que o vocábulo “uzmércáduz” não é sinônimo de “mercados”. O primeiro é a expressão viciosa do segundo. Como na manjadíssima frase de La Rochefoucauld: “A hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude”. Vamos ver.

O presidente afirmou:

“O que a gente puder fazer para cumprir a meta fiscal, a gente vai cumprir. O que eu posso te dizer é que ela não precisa ser zero. O país não precisa disso. Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo o corte de bilhões nas obras, que são prioritárias para esse país. Então eu acho que, muitas vezes, o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que ele sabe que não vai ser cumprida. Então eu sei da disposição do Haddad e da minha disposição. E quero dizer para vocês que nós dificilmente chegaremos à meta zero. Até porque eu não quero fazer corte de investimento e obras. E se o Brasil tiver um déficit de 0,5%, o que é que é? 0,25%, o que é que é? Nada! Absolutamente nada! Então, nós vamos tomar a decisão correta e nós vamos fazer aquilo que for melhor para o Brasil”.

A Bolsa caiu, o dólar subiu etc. Não de imediato. Demorou um pouco. A turma do dinheiro, inicialmente, não deu muita bola, convenham, ao óbvio. Quando, no entanto, “uzmercáduz” começaram a gritar “fogo na floresta!” por intermédio de prepostos, aí houve uma mexida. E se viu o ciclo conhecido. Tonitruou-se que o homem fizera a apologia da irresponsabilidade fiscal; que ignora os gastos e dispara o que lhe dá na telha… Nessas horas, duas perguntas são feitas aos berros, ainda que em silêncio: “Aonde vamos parar? Quem esse cara pensa que é?” Os analistas “duros” apostam que, se apelarem a um horizonte apocalítico e se desqualificarem o governante, demonstrarão ser isentos como as flores. Sei… Em certos casos, cumpriria indagar: se escrevessem o contrário, aconteceria o quê? Não conseguiriam mais pagar o feijão. Adiante.

Realizado o trabalho de agitação e propaganda, aí chegou a vez “Duzmecáduz” atuarem. Confirmados os números ruins, aqueles mesmos que ajudaram a produzi-los se regozijaram com a eficácia em fazer acontecer o que anteviram. Não é uma conspiração. Essa é a natureza do jogo.


Acertou ou errou?


Lula fez bem ou fez mal ao dar aquela resposta? No seu lugar, eu não o teria feito. Mas olhem a dificuldade deste exercício: colocar-me na posição de quem venceu três eleições, sendo a terceira, por tudo o que sabemos, um fenômeno menos da política do que da sua biografia. Pode-se discordar dele com muita dureza, mas é preciso cuidado na hora de dar algo parecido com um conselho.

Experiente é. Com frequência, o que parece improviso é cálculo — e especulo que pode, às vezes, não dividi-lo com pessoas de confiança.

Teria o presidente antecipado a precificação do não cumprimento da meta fiscal? Salvo uma certeza que não alcanço, mantenho a objeção porque entendo que a declaração pode dificultar as negociações no Congresso em busca de mais receita. Mas notem: em contraste, ele vem ampliando a sua base de apoio na Câmara ao menos — as dificuldades no Senado são um capítulo à parte.

A suposição de que seja um abobado, que vocaliza o que lhe dá na telha, como se ignorasse a existência “Duzmercáduz”, deve ser descartada. Se, ao fazê-lo, escora-se numa antevisão que se lhe mostra virtuosa, bem, essa eu não vislumbro.

Definitivamente, eu teria evitado esse caminho. Mas eu não seria eleito nem síndico do prédio — tampouco seus detratores. Certos nichos da imprensa fariam bem se ao menos modulassem o seu rancor. Há ataques histéricos, vazados numa linguagem de iniciados que houvessem acessado os arcanos do passado, do presente e do futuro. A arrogância é irremediavelmente grotesca.


Agora a hipocrisia


Dei início a este artigo cutucando a hipocrisia. Ora, leio diatribes furiosas, assinadas por autores que asseguram que o déficit zero é impossível desde que a proposta do arcabouço fiscal veio à luz. Trata-se de verdadeiras catilinárias, vazadas em linguagem panfletária. Vêm dos mesmos que anunciavam que a fragilidade do modelo está na dependência excessiva de receita, descuidando-se das despesas.

Obviamente, eu nada tenho contra gastar menos, especialmente quando há déficit. O que me incomoda é a dificuldade que essa gente tem de especificar o que tem de ser cortado e como se concilia, então, essa decisão com o resultado das urnas e com os superpoderes do Legislativo. Nem mesmo seria demonstrável que o eleitorado de Bolsonaro escolheu a responsabilidade fiscal, perdendo para uma fatia ligeiramente maior, que teria optado pela gastança. A assertiva seria estupidamente falsa.

Pergunto com clareza solar: Lula foi além do que têm sustentado os críticos mais azedos?

Com diferenças de acento, sua consideração não é substancialmente diferente da de Roberto Campos Neto, no fim de agosto, em entrevista a “Amarelas on Air”, da “Veja”, a saber:

“Mesmo não sendo zero o resultado fiscal de 2024, se o governo fizer o esforço de ir nessa direção, ganha um tempo. Mas, em algum momento, vamos ter que enfrentar a questão verdadeira, que é nosso gasto estrutural maior do que o de emergentes”.

Notem:

CAMPOS NETO:

“Mesmo não sendo zero o resultado fiscal de 2024…”

LULA:

“Quero dizer para vocês que nós dificilmente chegaremos à meta zero”

CAMPOS NETO:

“Se o governo fizer o esforço de ir nessa direção, ganha um tempo.”

LULA:

“O que a gente puder fazer para cumprir a meta fiscal, a gente vai cumprir. O que eu posso te dizer é que ela não precisa ser zero. (…) . Então eu sei da disposição do Haddad, sei da vontade do Haddad e da minha disposição”.

“Calma lá, Reinaldo! Um adverte para “o nosso gasto estrutural maior do que o de emergentes”, e o outro declara que não quer “fazer corte de investimento e obras”. Fato. Um se expressa como se devesse satisfações apenas a uma suposta racionalidade técnica; o outro não pode ignorar a política.

Lembro, neste ponto, que o, vá lá, “projeto” derrotado não contemplava um corte radical de gastos. Ao contrário. Se a memória não me falha, Bolsonaro só se tornou competitivo depois de duas PECs inconstitucionais, na boca da urna: uma ampliava benefícios sociais, e outra caçava receitas da União e dos Estados para baixar na marra o preço dos combustíveis. A conta sobrou para essa gestão.

Concluo.

“Uzmercáduz” são “uzmercáduz”. Nem mesmo se lhe pode imputar hipocrisia porque é impossível apontar suas disposições subjetivas. Também é inútil lhe puxar as orelhas. Nesse nicho, os “sujeitos” são, a um só tempo, “todos” e “ninguém”. Já os que barateiam o apocalipse porque foi o presidente a dizer o que eles próprios asseguravam desde que o arcabouço foi lançado… Bem, são hipócritas “no sentido infame e mesquinho” da hipocrisia.

“Errado, Reinaldo! Nós pregamos corte radical de gastos!” É? Convido-os, então, a fazer ao menos uma redação, segundo as regras do Enem: definido o problema, apontem uma solução que contemple o tempo e as exigências da política, além dos superpoderes do Congresso. Sem isso, o que se tem é conversa mole ou gosto de maldizer — nem que seja como último recurso para ganhar a vida, o que deve ser muito triste porque, nesse caso, o vivente não é dono nem do ódio que espalha.

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