O acidente com Lula assanhou alguns nas redes antissociais em Gravataí. Episódios como este revelam os carniceiros do bem. Alguns, sem vergonha, se travestem de comunicadores. Mas este artigo não é sobre mendigos de likes – e pix. Associo-me ao jornalista Reinaldo Azevedo, em ‘Reaças’ escrevem o conto ‘A Queda e a Queda de Luiz Inácio Lula da Silva’, para tratar do principal.
Sigamos no texto.
Lula sofreu uma queda, teve um corte na parte de trás da cabeça e uma pequena contusão em área na superfície do cérebro. Segundo o médico Roberto Kalil, que não costuma falar à toa, o presidente está bem, mas há que se ter prudência. Como houve um discreto sangramento cerebral, é preciso verificar como o quadro evolui nas próximas 72 horas.
A consequência imediata no que diz respeito à gestão pública foi a suspensão da viagem à Rússia para a reunião dos Brics. A informação está em centenas de textos. Muitos deles falam mais por aquilo que sugerem do que pelo que informam.
O líder petista faz 79 anos no próximo domingo, dia do segundo turno das eleições. Tivessem peso, escreveram-se desde 1980 muitas toneladas de textos a anunciar a derrocada do PT. Não foi diferente neste pleito de 2024. Cumpre lembrar um chiste de Mark Twain, em 1897, depois de o “New York Journal” ter publicado que ele havia morrido: “Os boatos sobre a minha morte são um tanto exagerados”. Viveu até 1910 e escreveu mais 22 livros e uma peça de teatro.
É claro que se trata de uma ocorrência preocupante, pouco importando a idade que tenha um presidente da República. Lula é a mais importante liderança política do país. Se algo de razoável gravidade o atinge, é natural que isso desperte atenção, temores e, não sejamos hipócritas — basta verificar o lixão do X —, também esperanças.
A extrema direita e certa direita estão aí, com a boca mais aberta do que aqueles crocodilos que ficam à espera da passagem dos gnus no rio Mara, no Quênia. Aos valentes, como sabemos, pouco importam os métodos para voltar ao poder: golpe judicial (como em 2018), quartelada (como tentaram), alguma fatalidade, qualquer coisa… Até disputam eleições: se o resultado lhes é satisfatório, como nesta jornada, vivam as urnas! Se não é, como em 2022, então gritam “fraude!” e buscam melar o jogo.
Como Lula vai fazer 79 anos, então é preciso lembrar que quedas não são ocorrências assim tão raras na idade do presidente. Se um evento dessa natureza requer cuidado com uma pessoa jovem, tanto mais com uma “idosa”.
Ora, não é de hoje que a campanha trumpista contra Joe Biden foi importada para estas plagas, vocês sabem muito bem. Quando o atual presidente dos EUA ainda era candidato à reeleição, não era raro que se lembrasse por aqui que ele vai fazer 82 anos em novembro e que Lula terá 81 em outubro de 2026. Trump tem 78, e não se dá assim tanta atenção a esse número. Explica-se: os adversários do golpista americano têm com ele um pudor que ele próprio jamais terá com um oponente.
Vivemos dias complicados. Alguns sociólogos de fancaria — que sociólogos não são, mas abelhudos — resolveram se agarrar à tese de que a prevalência da direita e da extrema direita no pleito deste ano, e direi como essa questão se liga ao Lula idoso e sua queda, se deve a uma espécie de vocação natural do brasileiro para o conservadorismo. É… Vai ver não se deve mexer em time que está ganhando, não é mesmo? Afinal, um país como este, exemplar na distribuição de renda e na resposta às iniquidades, não pode correr o risco de votar em candidatos que falam em mudança do “statu quo”… Tenham paciência!
Esse “Brasil de direita” tem nome: emendas do Orçamento. Repito o que tenho dito há alguns anos: temos o mais elevado fundo partidário do mundo, e ele não se limita àqueles R$ 4,9 bilhões. A “vereança federal” construiu poderosas máquinas eleitorais. Tudo o mais constante, ela garante a sua própria reprodução com dinheiro do Orçamento. Em que pesem erros cometidos pelos, serei genérico, “progressistas”, e há muitos, são as dezenas de bilhões de recursos orçamentários o segredo da suposta guinada do país para a direita.
Também se canta em prosa e verso — e o próprio Lula falou recentemente sobre a mudança no mundo do trabalho — o fato de haver hoje uma mão de obra que não está interessada em garantias, mas no, sei lá como chamar, “espírito empreendedor”. Uma das despesas que mais pesam nas contas do país é a da Previdência. Há milhões de informais no país sem contribuição previdenciária e sem capacidade de poupança, o que acena, em algumas décadas, não para a pátria de empreendedores robustos, mas para uma velhice miserável porque o sistema não terá como ampará-los.
Lula, o “velhinho que cai”, também seria aquele avesso à modernidade e que ainda acredita, que horror!, que o Estado tem um papel a cumprir no desenvolvimento do país. Seria uma expressão do seu pensamento atrasado. Pois é… A mais recente edição da Economist traz um texto intitulado “A extraordinária economia dos Estados Unidos continua desafiando os pessimistas”.
Lá se lê:
“Há que se maravilhar com a economia dos Estados Unidos. Há não muito tempo, pensava-se que ela estava à beira da recessão. Em vez disso, ela terminou 2023 quase 3% maior do que 12 meses antes, tendo desfrutado de um dos anos mais prósperos do século até agora. E continua a desafiar as expectativas. No início deste ano, os economistas previam um crescimento anualizado no primeiro trimestre de 1%; essa previsão dobrou desde então. O mercado de trabalho também está com ótima saúde. A taxa de desemprego está abaixo de 4% há 25 meses consecutivos, o período mais longo com essa característica em mais de 50 anos.”
O que isso tem a ver com o Estado? Biden tentou injetar US$ 3,5 trilhões de dinheiro público na economia americana. O Congresso aprovou “só” a estratosférica quantia de US$ 2 trilhões — o correspondente ao PIB brasileiro de 2023. Se vencer, Kamala Harris pretende dar sequência a essa política. E não seria diferente, nesse particular, com Donald Trump.
Por aqui, os “çábios” confundem o desempenho do Centrão com “a ética protestante e o espírito do capitalismo” e o formidável desempenho da economia americana com “o espírito animal dos empresários”. Há muita grana pública nessa história, como há na União Europeia, na Índia e, claro!, na China.
Por aqui, os “çábios” confundem o desempenho do Centrão com “a ética protestante e o espírito do capitalismo” e o formidável desempenho da economia americana com “o espírito animal dos empresários”. Há muita grana pública nessa história, como há na União Europeia, na Índia e, claro!, na China.
Os “reaças” que decretam de novo a morte do PT veem um Brasil pulsante no triunfo do “emendismo” de direita e de extrema-direita; consideram a era da uberização sem Previdência uma coisa assim “mais Brasil e menos Brasília” — que a pobrada se lasque daqui a umas duas ou três décadas não é problema deles — e entendem que essa conversa de Estado na economia é coisa de quem ainda não viu a luz. Serve para EUA, Índia e China, mas não combina com nosso iluminismo trevoso.
Lula, este que caiu no banheiro, é visto em certos nichos como uma espécie de último entrave para que se alcance esse país das maravilhas que eles têm em mente. Sem o petista, quem sabe se consiga fazer, por exemplo, com que todas as estatais passem por um processo de “Eletrobrasileiração” ou “Sabespização”, de modo que mesmo as ações que pertençam ao Estado sejam sequestradas pelo controle privado. Isso, sim, é exemplo de tratamento adequado dispensado à coisa pública, não é mesmo.
Daí a torcida para que a queda de Lula prenúncio da queda de Lula. Rende um conto: “A Queda e a Queda de Luiz Inácio Lula da Silva”. Está sendo antevisto. Mas não creio que seja escrito.