JEANE BORDIGNON

Reflexões sóbrias

(Essa série de pequenos textos surgiu durante minhas andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, especialmente Lapa e Centro Histórico. Parou nos três primeiros tópicos. O 4 foi escrito recentemente, a partir das minhas memórias da “cidade maravilha purgatório da beleza e do caos”. O Rio é um amor que te atordoa, mas que também te faz sentir mais vivo, sabe? Meu Rio de Janeiro, “aquele abraço”, um dia eu volto pra você!)

1.A cidade transpira por seus poros de pedra e petróleo, respira de boca aberta com um bafo quente e ácido de quem passou o dia na rua e não teve tempo nem para escovar os dentes, alguém que anseia em sentar em um boteco qualquer e pedir uma cerveja para tentar esquecer que as ruas fedem à urina e vômito enquanto na esquina seguinte moças vendem o corpo para homens que durante o dia se escondem sob uma vida “respeitável” de fachada… uma fachada tão frágil quanto o copo de plástico onde um jovem bebe cerveja sentado no meio-fio, e a cerveja nunca está gelada o suficiente para aplacar o bafo quente que acompanha as centenas de pessoas que enfrentam a noite nessas ruas, porque já sabem que a vida é tênue demais e cada dia é um risco.

2.Já não importa o fedor das calçadas, porque esses homens já são parte de ambos, cheiro e espaço. Dormem indiferentes aos moços e moças bonitos que passam, aos cachorros que tentam cheirá-los, às crianças que soltam gritos e altos risos… Dormem indiferentes ao lixo amontoado logo ao lado, ao jovem que mija na árvore a alguns passos dali… Dormem esses homens que já nem sabem onde termina suas vidas e começa a sujeira da cidade, tão entranhada neles… Dormem esses homens para quem já não faz diferença se é noite ou dia. Dormem em qualquer lugar onde o corpo pedir descanso, mas dormem mais à vontade do que você em seu colchão de molas e lençol perfumado.

3.As paredes e muros gritam palavras de socorro… jogam sonhos na cara de quem passa quase esquecido de estar vivo, com a alma perdida entre a pressa para não perder o ônibus e a tensão de não saber se vai reencontrar os seus no fim do dia… As paredes e muros jogam tinta e espalham cores entre as nuvens de fumaça que saem dos caminhões e dos ônibus onde o povo vai mais espremido do que gado de corte, esse povo que assim como as reses vale pelo peso bruto, pela força de tração da engrenagem que enche o bolso do patrão… E quem anda leve pela calçada, e pára para ler o muro, e se sente engolido pelos grandes olhos que outro alguém gravou ali, e fica com as palavras da parede martelando as paredes da mente, ruminando música, lágrima e poesia – esse já perdeu a razão, dizem aqueles que olham pela janela do ônibus; esse é delicadamente perigoso, dizem aqueles que espiam das janelas do prédio espelhado – mas esse é apenas alguém que vive o segundo, o minuto, o momento que os aqueles outros esperam chegar, e esperam, e seguem a esperar.

4.A cidade engole os incautos e os distraídos. Com seu apetite de fera insaciável, atrai para um furacão de sons, sabores e sensações. O cérebro inebriado nem percebe o caminho que leva do encanto à perdição. Sinuosa e sedutora, a cidade envolve feito uma cobra ardilosa que se enrosca aos poucos em um corpo que está tão quente que demora a perceber o abraço frio. Porque a cidade, especialmente à noite, é êxtase, é um gozo além do corpo, que se intensifica a cada copo e cada toque. Seria perfeito, se não houvesse o dia seguinte, com um sol que invade os sentidos e parece questionar: “o que você está fazendo com sua vida?”

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