RAFAEL MARTINELLI

‘Revogar a Lei Áurea’ e outras ‘piadas’: Caso na Guarda de Cachoeirinha alerta para racismo institucional disfarçado de humor

O caso de um ex-subcomandante da Guarda Municipal de Cachoeirinha, acusado de injúria racial contra dois subordinados negros, não é um incidente isolado, caso comprovado. Só repete o racismo que permeia instituições que deveriam proteger, mas que, muitas vezes, reproduzem violências históricas.

As “brincadeiras” relatadas — como a menção à escuridão para justificar a invisibilização da vítima ou a ameaça de “revogar” a Lei Áurea — não representariam meros deslizes. São sintomas de um racismo institucional que naturaliza a humilhação e a subalternidade negra. 

GZH reporta as supostas injúrias, em “Eu aboliria a Lei Áurea”: ex-subcomandante da Guarda Municipal de Cachoeirinha é investigado por suposta prática de injúria racial. Os depoimentos das vítimas foram corroborados por colegas de corporação que viram os atos acontecendo, e o suspeito nega, conforme a polícia.

Como bem canta Elza Soares em “A Carne”, “A carne mais barata do mercado é a carne negra / Que vai de graça pro presídio / E para debaixo do plástico / Que vai de graça pro subemprego / E pros hospitais psiquiátricos”. A letra expõe a brutalidade de um sistema que descarta corpos negros, relegando-os às margens da dignidade. Não por acaso, o mesmo racismo que enche cadeias e periferias também se infiltra nas instituições, transformando colegas de trabalho em alvos de chacota e violência.

Como bem aponta Ivanir dos Santos, professor autor da série Resistência Negra, da Globoplay, o racismo não se resume a episódios individuais. Ele se manifesta de múltiplas formas: estrutural (excluindo negros de espaços de poder), institucional (normalizando desigualdades em corporações e sistemas) e cotidiano (em gestos, piadas e olhares que reforçam a inferiorização).

O caso de Cachoeirinha, caso comprovado no curso das investigações, exemplifica essa tríade: um agente público usa seu cargo para perpetuar violência simbólica, respaldado por uma cultura que ainda vê o racismo como “exceção” e não como crime.

A postura da prefeitura, que afastou o acusado e instaurou um processo disciplinar, é o mínimo necessário. Mas, quantos casos ficam silenciados pelo medo de represálias ou pela descrença nas vítimas?

A fala do secretário de Segurança Mauro Vargas, que citou a presença de negros em cargos de chefia como prova de diversidade, revela uma armadilha perversa: representatividade não anula racismo. Afinal, até a juíza Helenice Rangel, do TJ-RJ, sofreu ataques racistas em um documento profissional, sendo comparada a “bonecas das sinhás”. Se uma magistrada não está imune, o que dizer de trabalhadores comuns?

A naturalização do racismo como “mimimi” ou “exagero” — como no caso das “piadas” de Leo Lins — mostra que o problema é sistêmico, como alerta Eliana Alves Cruz, escritora, roteirista e jornalista. Nem avanços na legislação bastam. É preciso desmontar a máquina que produz esses crimes: revisar formações profissionais, criar canais seguros de denúncia e punir com rigor. Não apenas o agressor individual, mas a estrutura que o protege.

O racismo é uma guerra, como define Eliana. E guerras não se vencem com armistícios temporários, mas com estratégias radicais. Enquanto negros seguirem sendo assassinados, humilhados ou impelidos ao suicídio, como nos ‘casos isolados’ de todos os dias, qualquer discurso sobre “igualdade” será farsa. A mudança exige mais do que datas simbólicas ou condenações pontuais; exige que brancos assumam seu lugar na luta antirracista — não como salvadores, mas como aliados que reconhecem privilégios e os desmontam.

O caso de Cachoeirinha é um alerta. Quantos mais serão necessários para que o Estado e a sociedade acordem? Enquanto a resposta for “aguardar o próximo caso isolado”, estaremos todos cúmplices. “A carne mais barata do mercado é a carne negra / Que fez e faz história / Segurando esse país no braço, mermão”, como ecoa Elza. E esse mesmo país precisa, urgentemente, parar de devorar sua própria gente.

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