Compartilhamos a entrevista com o economista Ladislau Dowbor, feita por Gilson Camargo para o ExtraClasse
A revolução digital é tão profunda, em termos estruturais, como foi a revolução industrial há dois séculos e meio, afirma o economista Ladislau Dowbor em seu novo livro, A Revolução Digital, 106 p., que está no prelo e deve sair ainda em 2024 pela Editora Elefante. “Trata-se de outro modelo em construção, em que a financeirização supera a acumulação produtiva de capital, a exploração por meio do rentismo supera a exploração por meio de baixos salários (mais-valia), inclusive porque se desloca o próprio conceito de emprego”, alerta.
Professor titular da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Dowbor foi consultor de agências da ONU, governos e municípios e organizações do Sistema S. De origem polonesa, nasceu na comuna francesa de Banyuls-sur-Mer, 1941, quando seus pais fugiam da Segunda Guerra Mundial. Veio para o Brasil aos 10 anos de idade. Em 1964, atuou como militante e dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi perseguido pela ditadura militar, preso e torturado, e integrou o grupo de 40 presos políticos libertados em troca do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, em 1970.
Após a Anistia, estudou Economia Política na Universidade de Lausanne, na Suíça, e fez mestrado e doutorado em Ciências Econômicas na Escola de Economia de Varsóvia. Dowbor assina como autor e co-autor nada menos que 45 livros em vários idiomas além do português. Seus livros mais recentes, Resgatar a função social da economia (Elefante) e O pão nosso de cada dia (Autonomia Literária), bem como toda sua produção intelectual estão disponíveis para download no website dowbor.org – no qual ele ensina os fundamentos da economia em vídeos para não iniciados. Nesta entrevista, ele explica como o sistema financeiro se apropriou do dinheiro das famílias e do Estado ao fazer a roda da economia girar ao contrário para que banqueiros e rentistas possam lucrar muito sem produzir nada.
Extra Classe – Quais fundamentos da economia são indispensáveis para que um leigo entenda o seu lugar na economia e como esse sistema funciona?
Ladislau Dowbor – As pessoas se desorientam diante de tantos truques financeiros, de todos esses discursos sobre déficit, o problema do orçamento, do arcabouço fiscal. Na realidade, a economia não é complicada, basta entender o que é essencial dentro daquilo que a gente chama ciclo econômico. As pessoas tentam entender pedaços da economia e não entendem que o processo gira, é um ciclo completo e é preciso pegar isso parte por parte para um melhor entendimento.
EC – O que é essencial?
Dowbor – No centro de todo o raciocínio econômico, para que a gente quer fazer funcionar a economia? É para as famílias, as pessoas devem estar no centro, não é a gente que deve funcionar para a economia, mas o contrário, a economia que precisa ser adequada para que as famílias, a população, vivam bem. Essa articulação fundamental deve ser com todo o sistema produtivo do país. Isso funciona de maneira basicamente simples no sentido de que as famílias vão fornecer trabalho em troca de salário, dinheiro que vai permitir gerar demanda por produtos. Essa demanda é fundamental para as empresas. A empresa precisa das pessoas para ter mão de obra e também para consumir o que ela produz. Se essa capacidade de compra das famílias se rompe, também se rompe o processo produtivo. Tem que ter um equilíbrio entre a remuneração das famílias e a capacidade de investimento das empresas.
EC – Qual deve ser o papel do Estado na economia?
Dowbor – Outro personagem essencial nesse processo é o Estado, que funciona porque suas receitas são geradas pelos impostos, tanto aqueles gerados sobre o consumo das famílias quanto os impostos sobre os processos produtivos. O Estado é absolutamente fundamental. Eu trabalhei na China, na Europa, em países ricos e pobres. Onde funciona, o Estado representa a geração de receitas que equivalem a pelo menos um terço e, frequentemente, como nos países nórdicos, metade do PIB. Isso é muito importante, porque o Estado passa a ter dinheiro para financiar as políticas sociais. Você precisa de segurança, mas você não compra polícia, não deveria pelo menos… O básico é que tem coisas como a segurança para as quais a gente depende do estado. Veja saúde, educação, cultura, o bem-estar das famílias, um terço da renda vai depender do salário indireto, você paga o imposto, mas vai ter uma escola para o seu filho estudar, hospital, segurança, etc.
EC – O que o senhor diria para quem defende estado mínimo, empreendedorismo e outras crenças neoliberais que nos trouxeram até aqui?
Dowbor – Nos países que funcionam adequadamente, e isso vale para os mais diversos matizes políticos, todos têm sistemas de políticas sociais essencialmente públicos porque é muito mais barato e eficiente do que transformar saúde numa indústria da doença e coisas do gênero. O Estado também faz funcionar a infraestrutura, torna viável o acesso à energia, combustíveis, transporte, telecomunicações, água e saneamento. Trabalhei com esses sistemas na China, na África, na Suécia, ou seja, reitero, países ricos e pobres. Onde funciona, toda essa parte de infraestrutura é organizada pelo Estado, não é mercado nem concorrência, não é possível investir em uma rede ferroviária conforme flutuações de mercado, por exemplo. São sistemas planejados.
EC – Por que esse modelo de economia com base no sistema produtivo e participação do estado está fragilizado?
Dowbor – Esse é o ciclo que funciona e funcionou em particular no que a gente chamou de estado de bem-estar no pós-guerra na Europa, nos Estados Unidos e hoje está sob ataque e fragilizado. Está fragilizado a partir de um processo que se caracteriza hoje como financeirização e que deforma radicalmente o conjunto do processo, porque aqui vai imperar o dinheiro, o sistema dos interesses dos bancos, os interesses financeiros. Você compra uma geladeira numa loja que diz ter total dedicação a você e você vai ficar se perguntando por que pagou o dobro do que uma geladeira vale. Na verdade, o dinheiro mudou de características. Ele não existe concretamente: 95% do que chamamos liquidez hoje são apenas sinais magnéticos e isso permite aos bancos, aos grandes grupos financeiros internacionais organizar uma exploração através de taxas de juros.
EC – Onde entra a revolução digital que o senhor analisa no seu novo livro?
Dowbor – A revolução digital está causando impactos tão profundos sobre a humanidade quanto em outra era causou a Revolução Industrial. O que chamamos de capitalismo tem as suas raízes na industrialização, que envolveu transformações nas técnicas e nas relações sociais de produção, com o trabalho assalariado e o lucro do capitalista, além de um marco jurídico centrado na propriedade privada dos meios de produção. A revolução digital, que envolve uma expansão radical das tecnologias, bem como a generalização da economia imaterial, a conectividade global, o dinheiro virtual e o trabalho precário, deslocou a própria base da sociedade capitalista.
EC – Como se deu esse deslocamento?
Dowbor – Em particular, a apropriação do produto social por minorias ricas, porém improdutivas, já não exige geração de emprego e produção de bens e serviços na mesma escala; ela passa pela intermediação do dinheiro, do conhecimento, das comunicações e das informações privadas. Onde a fábrica imperava, hoje temos as plataformas em escala planetária, que exploram não só as pessoas, através do endividamento, por exemplo, mas também as próprias empresas produtivas, por meio dos dividendos pagos a acionistas ausentes (absentee owners). A atividade industrial permanece, sem dúvida, como permaneceu a atividade agrícola diante da Revolução Industrial, mas o eixo de dominação e controle já não está nas mãos dos capitães da indústria, e sim nas de gigantes financeiros como BlackRock, de plataformas de comunicação como Alphabet (Google), de ferramentas de manipulação como Meta (Facebook), de intermediários comerciais como Amazon. O mecanismo de apropriação do excedente social mudou, e com isso mudou a própria natureza do sistema. Estamos no meio de uma transformação profunda da sociedade, nas suas dimensões econômica, social, política e cultural, gerando o que tem sido chamado de crise civilizatória. Transitamos para outro modo de produção.
EC – Como atua o sistema financeiro?
Dowbor – Aquele dinheiro que a família ganhou como salário, a partir do seu trabalho será drenado em grande parte através de taxas de juros que no Brasil são de 51%. Na Europa são 4%, na China, 4,6% ao ano. Aqui, 51%. Nenhuma família aguenta isso. Temos 71 milhões de adultos que estão inadimplentes no Brasil, que estão alongando a dívida, uma dívida que já pagaram várias vezes e que continuam pagando. Isso é bandidagem desse sistema financeiro. Essa lógica se estende à área produtiva, às empresas, que também estão pagando taxas de juros, no caso brasileiro, 21%, de acordo com dados do Banco Central. Não é viável pegar um empréstimo com essa taxa de juros, devolver o empréstimo e ainda por cima ter lucro. Isso não funciona.
EC – No seu livro A era do capital improdutivo, o senhor afirma que os bancos e o sistema financeiro como um todo já estiveram a serviço do sistema produtivo, mas assumiram o controle e passaram a faturar mais com juros, ou seja, sem produzir nada. Como o sistema financeiro drena os recursos de um país?
Dowbor – Todo o sistema se fragilizou em particular a partir de 2016. As famílias estão pagando juros ao invés de fazer mais compras. As empresas não têm para quem vender. Está mais barato contratar, mas para que uma empresa vai contratar se ela não tem para quem vender o que ela produz? Mudou o sistema. O que as famílias pagam de juros representa cerca de 10% do PIB, que em vez de se transformar em atividades econômicas vai enriquecer o sistema financeiro. Se você pegar 10% do PIB isso representa R$ 1 trilhão. É o que eles tiram das famílias só em taxas de juros. Sabe qual é o orçamento do Ministério da Saúde no Brasil? R$ 320 bilhões. Das empresas, vai ter mais 3% do PIB. O Estado não escapa do endividamento. Criaram a taxa Selic, que fixa os juros em 10,75%, e é por onde estão sendo drenados os recursos públicos. Não é que o Estado se endividou porque construiu estradas, universidades, etc. Não. É juro sobre juro. O banco pega o dinheiro que eu deposito lá e compra títulos do governo, que vai pagar 10,75% de juros ao ano sobre o meu dinheiro. Esse dreno no Brasil, em 2024, vai representar mais ou menos 8% do PIB, cerca de R$ 800 milhões. E quem ganha não são produtores. Estão emprestando dinheiro que, aliás, não é deles, porque o dinheiro do Estado é dos nossos impostos e o dinheiro dos bancos é dos nossos depósitos.
EC – Quem está por trás desse sistema e quanto faturam?
Dowbor – Na verdade, esse é o capital improdutivo, que tem um lucro líquido, um ganho sobre o trabalho dos outros. A partir de 1995 toda essa gente perfaz um grupo de 290 bilionários no Brasil, gente de imensa grana. Praticamente todos são isentos de impostos, porque lucros e dividendos divididos no Brasil são isentos de impostos. Se você faz exportação de bens primários, a partir da privatização da Vale, ou a exportação de carnes, você é isento de imposto de acordo com a Lei Kandir. E também temos a evasão fiscal. Eles deveriam pagar imposto, mas não estão pagando. Eu pago 27,5% sobre o meu salário. Eles não pagam, porque é mais fácil, o dinheiro é uma coisa imaterial, uma abstração que só existe no computador… Eles tiram 6% do PIB. O que não é pago de imposto por quem deveria pagar é um monte de dinheiro que a gente não tem como calcular. Todo esse sistema, por baixo, ele esteriliza 25% do PIB, ou seja, um quarto de todos os esforços que a gente desenvolve de produção no país é captado por gente que não produz rigorosamente nada, isso pra dizer de maneira educada. Isso se chama financeirização.
EC – Por que essa questão é tão central para se entender a economia?
Dowbor – É porque antigamente o tipo de exploração, de apropriação do dinheiro, se dava por uma pessoa que produzia coisas. Ele podia explorar o trabalhador, mas para isso tinha que gerar o emprego, produzir alguma coisa. Aqui não. É simplesmente intermediação financeira, um sistema de agiotagem que está paralisando o país e quando eles dizem que nós temos que ser austeros, haja austeridade quando você está pagando, dando de presente, sem esforço produtivo correspondente R$ 800 bi só na taxa Selic, que é dinheiro dos nossos impostos. Esses recursos, ao invés de virarem investimento, se transformam em lucro dos grandes grupos financeiros. Esse dinheiro vai para as mãos de quem? É a Faria Lima, os grandes bancos e em particular o sistema global: BlackRock, StayStreet, Vanguard, JP Morgan, Goldman Sachs, os grandes grupos que hoje manejam esse sistema. Não é só dinheiro drenado do Estado, das famílias e dos produtores internos, mas ele também é drenado do país. Quando você privatiza a Vale, por exemplo, você também a desnacionaliza. O lucro que foi gerado, os dividendos pagos, tudo isso vai para grupos internacionais.
EC – Como inverter essa lógica, ou seja, como esse dinheiro pode voltar a ser útil e alimentar uma economia que seja de fato produtiva?
Dowbor – Como eu explico na quarta videoaula de O capital produtivo – Pão nosso de cada dia, do curso on-line Pedagogia da Economia, em parceria com o Instituto Paulo Freire, sem resgatar o controle e regulação do Estado e sem racionalizar o processo, nada funciona, a não ser em favor dos atravessadores. O processo produtivo precisa ser misto, nunca só privado como temos hoje. Somos sociedades demasiado complexas para sermos geridos por simplificações ideológicas como o neoliberalismo.
EC – O que o senhor propõe?
Dowbor – No estudo O Pão Nosso de Cada Dia: opções econômicas para sair da crise, propusemos um conjunto de soluções baseadas não no maniqueísmo ideológico, mas no acompanhamento do que funciona, em que condições e com que formas de organização, nos mais diversos setores: produzir carros, comercializar bens e serviços pode ser regulado no quadro da propriedade privada e com mecanismos de mercado, mas as grandes infraestruturas, como transportes, energia, comunicações e água e saneamento precisam de visão sistêmica, planejamento de longo prazo e participação decisiva do Estado. Outra área vital da economia, que hoje se tornou dominante, que são os serviços de intermediação como finanças, comércio de commodities, intermediação jurídica e semelhantes – os cobradores de pedágio de qualquer atividade econômica – precisam de sistemas de regulação e em particular de setores estatais para reduzir a força da cartelização: hoje a economia é dominada por intermediários que “facilitam”, mas na realidade são atravessadores. E uma quarta área que se agigantou, a das políticas sociais, com saúde, educação, segurança e semelhantes, onde funciona, é assegurada sob forma de políticas públicas, gratuitas e de acesso universal.
EC – Onde funciona?
Dowbor – Ao olharmos como e onde funcionam de forma adequada as diversas áreas de atividade, a educação na Finlândia, as políticas urbanas na Dinamarca, o sistema financeiro na China, na Alemanha e na Suécia, o sistema de saúde na Grã-Bretanha, a conclusão a que chegamos é que não se trata de Estado máximo ou mínimo, mas do Estado dirigir os setores em que a visão pública e sistêmica é essencial. As empresas produtivas podem sim se regular por mecanismos de mercado, dentro de um marco jurídico que controle a formação de monopólios e os impactos ambientais. As grandes redes de infraestruturas precisam de visão de longo prazo, objetivos sistêmicos e de planejamento público, com forte participação do Estado. As plataformas de intermediação financeira e de comunicação precisam ser confrontadas fortemente com regulação, pois tendem naturalmente a formar monopólios de demanda.
EC – Ou seja, o inverso da concepção neoliberal que defende o “Estado mínimo” e privatizações…
Dowbor – As políticas sociais exigem formas descentralizadas e participativas de gestão, já que se trata de redes capilares de serviços que devem chegar a cada casa, a cada criança, a cada comunidade. Ou seja, precisamos optar pelas formas de organização e processos decisórios que melhor funcionem segundo as diferentes áreas de atividade. Podemos chamar isso de sistemas mistos e articulados de gestão. Não se trata de simplificações ideológicas, e sim da aplicação do bom senso.
EC – Por que não privatizar?
Dowbor – Privatizar a Petrobras e submeter o conjunto do país às oscilações dos mercados internacionais, quando temos a matéria prima e a cadeia técnica completa nas nossas mãos é compreensível pelos interesses envolvidos, mas é um desastre para o país, e uma idiotice em termos de gestão. As exportações de recursos naturais devem servir para financiar o desenvolvimento, não rentismo de acionistas. E o Estado precisa retomar o seu papel articulador do conjunto.