Associo-me ao jornalista Reinaldo Azevedo, em seu artigo Savonarolas do mercado insistem em enfocar pobres com tripas de aposentados. Sigamos no texto.
Já ouviram falar de Savonarola (1452-1498), o fanático religioso que resolveu declarar a independência de Florença, que considerava ser a nova Jerusalém, e ele, claro!, o profeta talhado para revelar a vontade divina? A expressão “fogueira das vaidades” remete a seus seguidores, embora ele não a tenha inaugurado. A verdadeira devoção pedia que se queimassem todos os bens materiais, inclusive livros e obras de arte. Que se consumisse, enfim, a “vanitas”: a vacuidade, a falsidade, a inutilidade.
Assim se mostram os tais mercados. A exemplo de Savonarola, não quer dizer que eles próprios acreditem no que dizem. O importante é que outros acreditem no que dizem… O fanático malucão de que falo vivia a rogar que Deus o fulminasse se estivesse errado e prometia atravessar as chamas e sair intacto do outro lado. Até que alguém quis pagar pra ver. Ele, obviamente, correu. Seu prestígio entrou em declínio e acabou executado.
Savonarola vivia às turras com o poder papal, que ele considerava corrompido pela política. Fé verdadeira, afinal, era a sua, e seus seguidores tinham de abrir mão de todos os valores da vida mundana.
Costumo chamar “Savonarola” todo fanático que se nega a negociar qualquer coisa e que ignora os limites da realidade em nome do seu credo. Assim são esses “mercados” que transformam numa expressão do horror um país que vai crescer mais de 3%, que apresenta uma taxa de desemprego historicamente baixa, com recorde em muitos anos na renda real do salário. A inflação está um pouco acima da banda superior da meta, mas é evidente que não há descontrole. Cadê o horror?
O Brasil tem um arcabouço fiscal. O ministro Fernando Haddad anunciou ontem a meta de cortar R$ 70 bilhões em dois anos. De onde vem a economia? Haverá um teto de valorização real do mínimo, que será o do próprio arcabouço — 2,5% —, não mais a correção da inflação somada à variação do PIB, que resultou, neste ano, em elevação de 6,97%. Para o pagamento do abono do PIS/Pasep, considera-se como ganho de referência para ter direito ao benefício R$ 2.640, não mais os dois mínimos: R$ 2.824.
Deve-se estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria dos militares, e o teto de ganho no serviço público terá de ser respeitado: R$ 44.008,52. As emendas parlamentares terão de crescer abaixo do limite do arcabouço, que é de 2,5%. Sempre que houver déficit primário, não se poderá ampliar benefícios tributários. E será preciso, claro, negociar com o Congresso.
Os opinadores
Os Savonarolas foram convocados a opinar. Admitem que o corte de R$ 70 bilhões nesses dois anos é significativo, mas sabem que muita coisa tem de ser negociada com o Congresso. Até porque o Brasil vive hoje um semiparlamentarismo perverso, com o Congresso raptado mais de 20% do que sobra de gasto discricionário, sem precisar prestar contas. A gente viu o desconforto quando o ministro Flávio Dino pediu algumas coisas elementares: quem destinou o dinheiro?; para onde?; que controle há que assegure a correta aplicação dos recursos?
O dólar fechou ontem acima de R$ 5,90. A torcida ensandecida para que passe dos R$ 6 chega a ser pornográfica. Se o valor da moeda americana traduz desconfiança sobre a economia brasileira, então seria preciso constatar que nunca vivemos momento tão ruim… Alguém se atreve a dizer isso? “Ah, Reinaldo, a questão não é essa…” Então é qual?
Os fanáticos enlouqueceram ontem porque vazou a informação, confirmada pelo pronunciamento do ministro Fernando Haddad, de que se anunciaria a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil. Não agora. Só a partir de 2026 — quando, de resto, R$ 5 mil já não valerão… R$ 5 mil. Haddad diz que não há impacto fiscal porque o que se deixa de arrecadar será compensado pela elevação do IR de quem ganha acima de R$ 50 mil. Mais ainda: a isenção até R$ 5 mil será aplicada aos demais salários até esse valor, mas apenas até o teto de R$ 7 mil. Acima disso, é tabela cheia.
O que deixou bravos os opinadores? Dizem que foi um erro do governo ter falado em isenção de Imposto de Renda para quem recebe a estratosférica (!!!) quantia de R$ 5 mil porque o governo estaria fazendo movimentos contraditórios: mexeu no salário mínimo e no abono para cortar gastos, mas anuncia uma medida que abre mão de receita. De fato. Mas também compensa com a tributação extra dos salários acima de R$ 50 mil, não?
É… Mas aí não pode.
Enforcar quem ganha o mínimo com a tripa do aposentado
Afirmei ontem que a única coisa que contentaria o mercado seria enfocar quem recebe o salário mínimo com a tripa de um aposentado. Pego carona na frase de outro clérigo, Jean Meslier (1664-1729). Viveu uma vida como aparente devoto. De verdade, era ateu, e deixou o testemunho em livro, editado por Voltaire, a quem acabou se atribuindo a sua sentença: “O homem só será livre quando o último rei for enforcado com as tripas do último padre”.
Afirmo lá no começo que Savonarola detestava a política, porque ela também seria uma das distrações contra uma vida verdadeiramente monástica, marcada pela renúncia. Esses “mercadistas” também são assim. Um deles me falava, esses dias, com um certo esgar de nojo, que Lula, por razões políticas, se negava a passar o facão — as sugestões variam segundo a paixão sanguinolenta do fanático — em Saúde, Educação e Previdência. Mais: sem essa de ganho real do salário mínimo, mesmo esse que será vinculado ao arcabouço. É correção da inflação e pronto.
Não! Eles não têm em relação a desonerações e subsídios a mesma paixão “aporofóbica” — “aporofobia” é o termo cunhado pela filósofa Adela Cortina e significa rejeição, aversão ou hostilidade a pobres. A editora Contracorrente publicou no Brasil o livro intitulado justamente “Aporofobia”. Setores beneficiados pela desoneração da folha de salários não têm nem constrangimento nem vergonha de defender o “modelo Milei”.
Aquele Savonarola detestava que existisse a política, e estes detestam que ela exista — ao menos para os que consideram adversários. Que criem, pois, o candidato que, em 2026, tenha a clareza de dizer aos brasileiros: “Se votarem em mim, acabou a farra de aumento real do salário mínimo; nem 2,5% nem coisa nenhuma! Vai ser zero. Assim também será com as aposentadorias. E vamos pôr fim ao abono. Também vamos elevar a idade mínima da aposentadoria para, sei lá, 75 anos para homens e 70 para mulheres, além de diminuir o teto de ganho. E assim nadaremos em superávit, e todos serão felizes para sempre…”
Alguém vai falar isso? Esse programa não ganhou a eleição. Todos assistimos às dificuldades do ministro Fernando Haddad para, ora vejam, taxar super-ricos e offshores. Até outro dia, meu porteiro pagava Imposto de Renda. Eles não. E ninguém estava indignado.
Encerro.
É claro que eu acho que o governo tem de cortar despesas. E parece que o pacote dá conta disso. Mas também é preciso lembrar que a política existe. Sem ela, temos ditaduras e autocracias. Não estou aqui a fazer cálculo se a eleição de Lula será fácil ou difícil; se a direita e a extrema-direita caminham juntas etc. A única certeza é que o biltre golpista não será candidato.
Entendo, sim, que é chegada a hora de os Savonarolas tentarem eleger o seu ídolo, mas sem esconder o programa: “Com esse aqui não tem moleza. Se preciso, ele mete uma martelada na cabeça do pobre”.
Encerro pra valer: parece-me que as pessoas podem e, mais do que isso, devem cobrar de Haddad e do governo que demonstre que o corte de R$ 70 bilhões é factível. Atacar o anúncio feito porque o ministro confirmou uma medida que fez parte da campanha eleitoral de Lula, como se ela desmoralizasse todo o esforço do corte de gastos, é fundamentalismo à moda Savonarola. No fim das contas, ele era um mentiroso e um picareta.