A Vara do Júri de Gravataí vai analisar se PMs que atiraram em turista angolano e em costureira cometeram crime doloso, ou seja, com intenção, ou assumindo o risco de matar, o que levaria os policiais a júri popular.
Conforme reportagem de Adriana Irion, publicada hoje em GaúchaZH, a 2ª Auditoria Militar decidiu que a conclusão da investigação da ação envolvendo o turista angolano Gilberto Casta Almeida e a costureira Dorildes Laurindo, que morreu, passe por análise da justiça de Gravataí. Será verificado se os policiais militares que atiraram serão julgados pelo Tribunal do Júri, por crime doloso contra a vida, ou pela Justiça Militar, por crime culposo.
Reproduzo a reportagem e, ao fim, comento.
Gilberto e Dorildes foram baleados por PMs em 17 de maio, quando retornavam de uma viagem ao Litoral em um carro do aplicativo BlablaCar. O motorista, Luiz Carlos Pail Junior, era foragido da Justiça e tentou escapar da perseguição policial, que começou em Cachoeirinha e terminou em Gravataí.
Depois que o carro parou, os PMs atiraram 35 vezes. Os disparos deixaram Gilberto e Dorildes feridos. A costureira morreu depois de 16 dias de internação.
Gilberto ficou preso por 12 dias. Só foi solto porque o inquérito da Polícia Civil de Gravataí apurou que ele não havia atirado contra a viatura, como haviam afirmado os policiais. Luiz Carlos também nega que tenha feito disparo contra os PMs.
A Corregedoria-Geral da Brigada Militar concluiu o Inquérito Policial Militar (IPM) com o entendimento de que os três policiais envolvidos na ação agiram em legítima defesa, mas com excesso culposo. Eles foram indiciados por crime militar culposo e ainda serão julgados pelo Conselho de Disciplina da BM, com base em processo administrativo disciplinar.
Os três seguirão afastados das funções até a conclusão do procedimento.
A promotora da 2ª Auditoria Militar, Isabel Guarise Barrios, fez o pedido de declinação de competência do caso para o Tribunal do Júri por se tratar de uma ação policial com morte, ou seja, situação que pode ser enquadrada como homicídio doloso.
A partir de agora, o promotor Fernando Bittencourt, da 1ª Promotoria de Justiça Criminal, vai estudar o caso levando em conta as conclusões da BM e o que foi apurado no inquérito da Delegacia de Homicídios de Gravataí. Com o parecer dele, a juíza Valéria Eugênia Wilhelms, titular da Vara do Júri, decidirá se ação dos PMs se enquadra como homicídio doloso ou não.
Sigo.
Como pode a Corregedoria-Geral da Brigada Militar concluir o Inquérito Policial Militar (IPM) entendendo que os três policiais envolvidos na ação “agiram em legítima defesa, mas com excesso culposo”?
Os PMs atiraram 35 vezes após o carro parar! Dorildes morreu depois de 16 dias de internação. Gilberto foi ferido e ficou 12 dias preso, até cair a versão dos policiais de que houve troca de tiros.
Caso a juíza Valéria Eugênia Wilhelms concorde com o julgamento corporativo da Brigada Militar, estaremos frente a uma aplicação da ‘licença para matar’ que o presidente Jair Bolsonaro e o então ministro da Justiça Sérgio Moro tentaram, e não conseguiram, no Projeto de Lei 882/19, o fascitóide ‘pacote anticrime’, que mexia no artigo 23 do Código Penal, que trata do excludente de ilicitude.
O excludente de ilicitude está previsto no artigo 23 do Código Penal, que exclui a culpabilidade de condutas ilegais em determinadas circunstâncias. Conforme esse artigo, “não há crime quando o agente pratica o fato: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. O parágrafo único diz: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”.
Bolsonaro e Moro queriam acrescentar a esse artigo o seguinte parágrafo: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.”
Ao fim, as evidências são de que é nosso caso George Floyd, negro assassinado em abordagem policial cuja divulgação das imagens convulsionou os Estados Unidos e teve reflexos em outros países, inclusive o Brasil. Em entrevista a Renato Dornelles, publicada pelo SUL21, o haitiano conta que os policiais disseram: “Tu vai sangrar até morrer. Morre capeta. Morre exu desgraçado”. Isso após a costureira cai dizendo: "Vocês mataram uma inocente".
É um pé no pescoço do cadáver de Dorildes – de Gilberto e da sociedade – a BM concluir que os policiais agiram em legítima defesa. Não se espera que brigadianos ofereçam rosas em uma abordagem, mas 35 tiros, sem nenhum contrário, sem arma empunhada pelos suspeitos?
É irrespirável esse mau cheiro que toma conta do país com notícias quase que diárias de abordagens violentas a pobres e pretos, muitas cometidas por pretos e pobres. Os policiais são os heróis, não os vilões.
A juíza pode corrigir isso, submetendo os PMs ao júri popular, onde a sociedade, e não a corporação, vai avaliar as circunstâncias dessa tragédia.