Durante muitos anos as touradas foram um divertimento muito popular. Embora de extrema crueldade, conquistavam legiões de fãs pelo mundo inteiro. Até mesmo Hollywood produziu inúmeros filmes que enalteciam a figura do toureiro, tais como Sangue e Areia (Blood and Sand, versões em 1922 e 1941), Os Amores de Carmen (The Loves of Carmen, 1948), Paixão de Toureiro (Bullfighter and the Lady, 1951) e Touros Bravos (The Brave Bulls, 1951), entre outros.
Os próprios toureiros da vida real ganharam papéis em filmes, como Luis Miguel Dominguín: ele atuou em filmes como A Volta ao Mundo em 80 Dias (Around the World in Eighty Days, 1956) e O Testamento de Orfeu (Le testament d'Orphée, ou Ne me demandez pas pourquoi!, 1960). O astro toureiro namorou várias estrelas de cinema, entre elas a atriz mexicana Mirolsava (uma das protagonistas de Touros Bravos). Ao ser trocada pela atriz norte-americana Ava Gardner no coração do “matador”, cometeu suicídio.
Um estúdio menor, a RKO Radio Pictures, também aderiu aos filmes de touradas, mas com um enfoque diferente. Arenas Sangrentas (The Brave One, 1956) mostrava o amor de um menino por um touro de 375 quilos, seu fiel animal de estimação. Leonardo é filho de um pobre camponês, empregado de uma grande fazenda. Seu pai socorre a sobrinha do patrão, e de recompensa ganha uma vaca, a mais velha do rebanho da fazenda e já sem serventia. O capataz, porém, descobre que o animal estava prenhe ao ser doado, e exige que a família devolva a vaca e seu futuro bezerro.
A vaca morre ao dar à luz o novilho, e o pequeno Leonardo resgata o bezerro, que batiza de Gitano, por ele ter sido “abandonado à noite na chuva à própria sorte, como um cigano”. Criado a leite de cabra, único animal leiteiro da família pobre, Gitano cresce forte e valente, e chama atenção dos donos da fazenda, que confiscam o animal. Leonardo, o único alfabetizado de sua família, escreve uma carta para Don Alejandro Videgray, o proprietário da fazenda, que mora na capital. Comovido, o “patrão” entrega a posse definitiva de Gitano a seu amigo.
Mas Don Alejandro morre em um acidente de carro, e Gitano, como todos os seus outros bens vão a leilão, e ele é comprado para ser usado em uma tourada. “Por que você os obedece como um cachorro medroso?” indaga o menino ao pai, que humilde responde “eu apenas faço o que mandam, não posso ir contra a lei”. O menino foge para a Cidade do México, a fim de salvar seu amigo de morrer na arena sangrenta, e chega ao palácio do governo, onde pede (em cena emocionante) clemência para seu melhor amigo. As cenas finais da tourada são angustiantes, e foram filmadas com Fermín Rivera, premiado toureiro mexicano. Embora o filme já tenha sessenta anos, não serei eu que revelarei o final (spoiler não!).
A RKO era um estúdio que produzia filmes de baixo orçamento. Mesmo assim produziu alguns dos maiores clássicos do cinema, como King Kong (Idem, 1933), Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e Psicose (Psycho, 1960). Aparentemente, a RKO era contra touradas, já que anos antes produzira a animação O Touro Ferdinando (Ferdinand, 1938), filme sobre um touro que preferia cheirar margaridas a duelar na arena, produzido por Walt Disney, antes dele ter o seu próprio estúdio.
O elenco de Arenas Sangrentas conta com muitos atores mexicanos de longa carreira, como Elsa Cárdenas (que interpreta Maria, irmã de Leonardo), que atua no cinema até hoje. Entre atores e atrizes pouco conhecidos do grande público, talvez o nome mais conhecido seja a bela loira platinada Joi Lansing, que interpreta uma turista americana que é contra as touradas. Mas o maior destaque do filme é sem dúvida o menino Michael Ray, na época com 12 anos, que interpreta Leonardo.
Michael Ray na verdade chama-se Michel Ray Popper de Carvalho e sua vida renderia um filme em Hollywood. Filho de mãe inglesa e pai brasileiro, o menino foi educado na Suíça, onde aprendeu a esquiar. Em 1954 o produtor Michael Balcon procurava um menino que soubesse esquiar para o filme Corações em Angústia (The Divided Heart, 1954) e Michael acabou ficando com o papel.
O menino de olhos azuis chamou atenção dos produtores de Arenas Sangrentas, e lhe deram o papel principal. Ele ainda atuaria com destaque em filmes importantes como O Homem dos Olhos Frios (The Tin Star, 1957) e Na Maré do Destino (Flood Tide, 1957). Seu último papel relevante seria como Farraj no filme Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962).
: Peter O’Toole e Michael Ray em Lawrence da Arabia
A produção de Arenas Sangrentas levou quase dois anos, e atrasaram os estudos do então adolescente, que abandonou o cinema e ingressou na Universidade de Harvard. Porém, Michael Ray não saiu dos holofotes. Ele representou a Inglaterra nos Jogos Olímpicos de inverno nos anos de 1968, 1972 e 1976, porém sem conquistar nenhuma medalha como esquiador. Depois disto, dedicou-se ao mundo dos negócios, ocupando cargos cada vez mais importantes em bancos renomados.
Michael de Carvalho, como Ray hoje é conhecido, casou-se com sua amiga de infância Charlene, filha de Alfred “Freddie” Heineken, dono da cervejaria Heineken, que faleceu em 2002, deixando 50,5% do controle da empresa para o casal. Hoje ele é um dos homens mais ricos do Reino Unido.
Em 1957, Arenas Sangrentas foi indicado a 3 Oscars: melhor edição, melhor mixagem de som e melhor roteiro para Robert Rich, roteirista estreante que nada a tinha a ver com a indústria do cinema, a não ser o fato de ser sobrinho dos produtores. Porém, ninguém reclamou o prêmio (foi a primeira vez que isto aconteceu) e o presidente do sindicato dos roteiristas recebeu a estatueta. O fato aumentou as suspeitas de que Robert Rich não existia. E era verdade.
Robert Rich foi um dos muitos pseudônimos usados por Dalton Trumbo. Brilhante roteirista em Hollywood, teve a carreira destruída por se recusar a dedurar colegas durante a caça às bruxas promovidas pelo senador McCharty, perseguidor de simpatizantes do comunismo. Foi um período negro da história do cinema, conhecido por McChartismo, e que obrigou muitos artistas, como Charlie Chaplin, a fugirem de Hollywood. Trumbo foi para o México, onde escreveu Arenas Sangrentas.
O nome de Trumbo só voltaria a ser creditado em um filme quando, em 1960, o diretor Otto Preminger exigiu que seu nome verdadeiro aparecesse como autor do roteiro de Exodus (Idem, 1960). Em seguida, o ator Kirk Douglas revelou que ele era o verdadeiro autor do roteiro de Spartacus (idem, 1960). Seu nome finalmente saiu da lista negra, e ele foi reintegrado ao sindicato dos roteiristas americanos, passando a ser creditado em todos os seus filmes seguintes. Em 1971 ele adaptou e dirigiu Johnny Vai a Guerra! (Johnny Got His Gun, 1971), baseado em um de seus primeiros romances, de mesmo nome, um clássico pacifista sobre um soldado desfigurado na Primeira Guerra Mundial. Foi sua única incursão como diretor.
Dalton Trumbo finalmente recebeu seu Oscar em 2 de maio de 1975, das mãos do então diretor da Academia Walter Mirisch. Na estatueta ainda constava o nome Robert Rich. Ele faleceu no ano seguinte, em 10 de setembro de 1976, aos 70 anos, vítima de um ataque cardíaco.
: Trumbo e Walter Mirisch
Em 1993 a Academia lhe concedeu outro Oscar, póstumo, pelo roteiro de A Princesa e o Plebeu (Roman Holliday, 1953). O roteirista Ian McLellan Hunter, que assinou o roteiro no lugar de Trumbo, aceitou dar o cachê do filme ao verdadeiro autor, mas se recusou a creditar o prêmio a ele. Quando enfim Cleo, a viúva de Trumbo, recebeu a honraria, entregaram a ela uma segunda estatueta: os herdeiros de Ian McLellan Hunter se recusaram a devolver o prêmio. Ironicamente, Ian também foi incluído na lista negra pouco tempo depois.
: Audrey Hepburn e Gregory Peck em A Princesa e o Plebeu
Diego Nunes, formado em Rádio e TV pela Universidade Metodista de São Paulo, é pesquisador da memória cultural e artística, e sua paixão é o cinema. Além disso, atua como diretor cultural da Pró-TV, Museu da TV Brasileira, e no departamento de arquivo da Rede Record de Televisão.
Para assistir filme Arenas Sangrentas, filme completo e legendado em português, acesse o Youtube.