Associo-me ao artigo Mudar a Ficha Limpa para ajudar Bolsonaro é multiplamente inconstitucional, do jornalista Reinaldo Azevedo, sobre a tentativa do deputado gaúcho Bibo Nunes (PL) de ‘limpar a ficha’ de Bolsonaro para torná-lo elegível — caso não seja preso.
Sigamos no texto.
Projetos para mudar a chamada Lei da Ficha Limpa — na verdade, a Lei da Inelegibilidade — ou qualquer outra podem aparecer às pencas. O Congresso existe, aliás, para isto mesmo: para fazer leis e para mudá-las, não para executar o Orçamento, embora execute — e, sim!, ele faz o que não deve com o amparo da Constituição, como não cansam de lembrar os senhores parlamentares. No caso das emendas, é esse o primeiro argumento que evocam para justificar a esbórnia. Pois é… Mas a Carta também traz outras disposições explícitas e implícitas que tornam o projeto do deputado Bibo Nunes (PL-RS), por exemplo, que busca devolver a elegibilidade a Bolsonaro, uma aberração de vários modos inconstitucional. Não obstante, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), pisca para ele. Vamos ver.
Lembro: no dia 30 de junho de 2023, o TSE concluiu o primeiro julgamento que condenou Bolsonaro, por um placar de 5 a 2, por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Trata-se do caso da reunião com embaixadores estrangeiros. A pena é a inelegibilidade por oito anos, conforme estabelece o Inciso XIV do Artigo 22 da Lei Complementar 64 — justamente a da Inelegibilidade, que foi alterada pela Lei Complementar 135 (a dita da “Ficha Limpa”).
Pois bem… O que fez o tal Bibo quatro dias depois? Apresentou um Projeto de Lei Complementar que altera precisamente o Inciso XIV do Artigo 22 da Lei Complementar 64. Os condenados pelos dois crimes que tornaram Bolsonaro inelegível ficariam proibidos de disputar eleição por dois anos apenas, em vez de oito. Vale dizer: o deputado propôs uma lei com a finalidade específica de beneficiar um indivíduo — ainda que um ou outro possam pegar carona se a porcaria fora aprovada. E há coisas ainda mais deletérias na investida.
A mudança proposta por Bibo beneficia ainda os que sofrerem sanção por abuso de poder econômico. NOTA: em outubro de 2023, o ex-presidente se tornou inelegível uma segunda vez, também por 5 a 2, aí por abuso de poder político e abuso de poder econômico. O motivo, nesse caso, foi a esbórnia ilegal nas festividades do 7 de Setembro de 2022, no bicentenário da Independência.
A questão da isonomia
Tudo compreendido até aqui, certo? A impunidade que os bolsonaristas querem promover compreende, por enquanto, apenas três crimes: justamente aqueles que levaram Bolsonaro às duas condenações. A segunda é posterior à apresentação do projeto picareta – embora a ação de inelegibilidade já tramitasse –, mas a primeira é anterior. É evidente que o deputado propôs uma lei para beneficiar seu aliado.
Os extremistas respondem com duas invectivas à evidência de que promovem a impunidade: 1) não estão livrando a cara dos que cometeram crimes de corrupção; 2) a Lei da Ficha Limpa (na verdade, insisto, a da Inelegibilidade) estaria sendo usada para punir apenas direitistas.
Desmonto a falácia:
1: a degradação do processo político não se dá apenas por aquilo que usualmente se entende por corrupção – questões envolvendo grana. A maior agressão que se pode fazer à democracia sempre será a institucional. Quem não sabe isso não sabe “zorra” nenhuma. É relativamente fácil meter na cadeia um pilantra que rouba dinheiro, mas é muito difícil prender um ladrão de instituições;
2: é mentira que a Lei da Ficha Limpa persiga direitistas. Voltem a 2018: a condenação de Lula ainda não havia transitado em julgado, como se sabe. Ele se tornou inelegível em razão da lei, que inabilita para a disputa os condenados em segunda instância. Sabemos quem venceu.
Bibo fez um Projeto de Lei Complementar para atender a um homem. Obviamente, isso fere um dos fundamentos da nossa Constituição: o da isonomia, que é largamente tratado, sob vários ângulos, no mais extenso Artigo da Carta: o 5º.
A Constituição afirmadora de direitos de 1988, conforme a exaltou Ulysses Guimarães, repudia privilégios e desigualdades que nascem do mando. A Carta só permite que se desigualem indivíduos, e há uma penca de julgados do Supremo a respeito, para buscar a igualdade de oportunidades, a exemplo das políticas de cotas. Mas o espírito da “Casa Grande” ainda vaga por aí, negando-se a se juntar às tradições mortas.
Um projeto de lei complementar talhado para beneficiar um indivíduo — Bolsonaro — é pornograficamente inconstitucional. Se Motta, presidente da Câmara, quer piscar para a aberração porque, no universo das ideias puras, considera que oito anos de inelegibilidade constitui tempo demais — volto ao tema —, não pode dar um de sonso, fingindo ignorar que a proposta tem endereço.
§9º do Artigo 14 da Constituição
Até aqui, lidei com valores da Constituição. Prestem atenção, no entanto, ao que vem agora. A mudança pretendida na Lei da Inelegibilidade afronta também a literalidade da Constituição. Vamos ver? A Constituição define no Artigo 14 as razões de inelegibilidade. E remete, como está no Parágrafo 9º, para lei complementar, outras causas de inelegibilidade. Transcrevo a passagem:
“9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.”
Está claro para você, leitor? Proteger a eleição dos abusos de poder não é questão de gosto, mas mandamento constitucional. Inexiste a opção de não fazer. Caso se altere, como quer Bibo, o Inciso XIV do Artigo 22 da Lei da Inelegibilidade, quem for condenado por abuso de poder econômico, abuso de poder político e abuso no uso dos meios de comunicação — justamente as três imputações que resultaram em duas condenações de Bolsonaro no TSE, reitero — ficará inelegível por apenas dois anos, tomando como referência para a contagem de tempo o ano a eleição.
Ora, é uma forma de ignorar o que dispõe a Constituição. Para tais crimes, ter-se-ia a mais desbragada e arreganhada impunidade. E o mandamento constitucional estaria sendo jogado no lixo. Ou alguém acha que dois anos servirão para conter os apetites vorazes? Ao contrário: eles serão açulados. Ainda mais explicitamente: na contramão do que dispõe a Carta, não se protegerão “a probidade, a moralidade e a legitimidade”; far-se-á precisamente o contrário. Aliás: o objetivo do projeto de Bibo Nunes é precisamente tornar inócuas e a Lei Eleitoral e a Constituição
Quais outros crimes?
O presidente da Câmara parece ter a impressão, ou algo assim, de que oito anos de inelegibilidade é tempo excessivo. Não deixa claro se está se referindo a qualquer crime ou apenas àqueles três contemplados no projeto de Bibo. Lembra Motta que isso compreende quatro eleições. E daí? Houvesse coincidência entre eleições federais/estaduais e municipais, seriam apenas duas. Mistura o que é contingente com o princípio.
Muito tempo por quê? Os oito anos de inelegibilidade para aqueles crimes toma como medida a Lei Complementar 81, de 1994 (a da Ficha Limpa é de 2010), que aplica essa punição para parlamentares das Três esferas de Poder cassados por quebra de decoro por quebra de decoro ou por infringir proibições expressas no Artigo 54 da Constituição.
E quanto aos demais? Motta também quer dar uma aliviada? Cito alguns casos. São inelegíveis por oito anos os condenados por crimes:
– contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
– contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
– contra o meio ambiente e a saúde pública;
– eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
– de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
– lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
– tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
– redução à condição análoga à de escravo;
– contra a vida e a dignidade sexual;
– praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando…
Também o presidente da Câmara transformará em questão, vamos dizer, doutrinária tentar livrar a cara de Bolsonaro? Lembro que tal senhor já foi indiciado por tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição do estado de direito, lavagem de dinheiro, associação criminosa, peculato, fraude em cartão de vacinação… O trabalho para torná-lo elegível pode ser, além de inconstitucional e constrangedor, também inútil.
Será que uma inelegibilidade de oito anos para os crimes de abuso de poder político, abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação fere o fundamento da proporcionalidade? Bem, parece não ser o caso. O que se mostra inadequado ao processo legislativo e muito pouco razoável é promover a impunidade.
O princípio da vedação do retrocesso
Cumpre ainda, nesse caso, evocar o princípio da vedação do retrocesso. A Constituição atribui à Lei Complementar a regulamentação da inelegibilidade para proteger a lisura da eleição. Ora, se o processo legislativo que se propõe agora busca vulnerar o que o constituinte original determinou que fosse protegido, ao se reduzir tal proteção, tem-se uma manifestação clara de retrocesso.
A inconstitucionalidade da proposta é patente e explícita. A propósito, e a pergunta também vai para o presidente da Câmara: haveria outros crimes de estimação a merecer a “proteção” da lei — porque se estaria diante de tal aberração — ou “apenas” abuso de poder político, abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação? Aberta a porteira, qual seria o tamanho da boiada?