Não está escrito em nenhum manual de jornalismo. Mas é uma regra de ouro na lida do repórter: não deixar passar batida a oportunidade de contar uma história. Lembrei-me desta regra na segunda-feira (6), quando escutei no rádio o noticiário da manhã. Uma das notícias dava conta que o governador gaúcho, Eduardo Leite (PSD), 40 anos, deu posse a Fábia Richter como a primeira secretária da Mulher do Rio Grande do Sul. E a sua secretária adjunta, a delegada de polícia Viviane Viegas. Assim estou resumindo a notícia. A Secretaria da Mulher é muito mais que uma nova estrutura de governo. É um convite ao engajamento, de forma concreta e cotidiana, à causa da proteção, do respeito e do empoderamento feminino. E do enfrentamento da violência contra as mulheres. O Brasil se perfila entre os 10 países mais violentos contra a mulher. Entre os estados brasileiros, na questão da violência contra as mulheres, o Rio Grande do Sul ocupa um lugar de destaque. Portanto, é bem-vinda a Secretaria da Mulher.
Para os repórteres, a criação da secretaria é uma oportunidade para remexer os crimes ainda não resolvidos contra mulheres. Há uma enormidade de motivos que levam ao feminicídio, como é chamado o assassinato de mulheres por motivos domésticos. Um exemplo foi o que aconteceu no feriadão de Páscoa e Tiradentes, em abril deste ano. Entre a quinta (17) e a segunda-feira (21), 10 mulheres morreram vítimas de feminicídio. Uma das explicações dadas na época pelas autoridades para o absurdo número de crimes foi o fato do feriadão ter sido longo. Como será longo também o feriadão de Natal, que se inicia numa quinta-feira (25) e termina no domingo (28). Sugiro que a imprensa faça um levantamento para saber qual a situação dos autores das mortes na Páscoa. Por que fiz tal recomendação? Simples: a impunidade é um dos fatores que mais incentiva o feminicídio. Nas minhas quatro décadas na lida de repórter trabalhei em muitos casos de assassinatos de mulheres. Os mais violentos foram aqueles em que os corpos não foram encontrados. Nesta situação, a família vive a ilusão de que a desaparecida um dia entrará pela porta de casa. Uma sensação que enlouquece os pais das vítimas e seus filhos. No Rio Grande do Sul, fiz reportagens em quatro casos com este perfil. Apenas um deles, da contadora Sandra Lovis Trentin, foi resolvido. Em janeiro de 2019, um agricultor descobriu uma cova rasa à beira da BR-158, no limite dos municípios de Palmeira das Missões e Condor, onde estava o corpo da contadora, que tinha desaparecido em janeiro de 2018. Ela foi identificada pela arcada dentária. Na ocasião, publiquei o post Cova onde estava corpo da contadora traz pistas para chegar ao mandante. Foi um caso de feminicídio e o mandante e o pistoleiro estão presos – todos os detalhes do crime podem ser encontrados na internet. Vou citar dois casos em que os corpos não foram encontrados. Em junho de 2005, em Porto Alegre, a comerciante Sirlene de Freitas Moraes, 42 anos, acompanhada pelo seu filho Gabriel, sete anos, foram encontrar uma pessoa com quem ela teve um caso extraconjugal e que prometera reconhecer a paternidade do menino. Mãe e filho nunca mais foram vistos. Trabalhei neste caso vários meses. A polícia vasculhou inúmeros locais em busca dos dois, mas nada foi encontrado. A família de Sirlene continua procurando por ela e pelo menino. A polícia tem um suspeito. Mas, sem os corpos ou uma prova forte que o ligue aos desaparecimentos, o crime segue sem solução.
O outro caso foi em abril de 2015. A professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Cláudia Hartleben, então com 47 anos, depois de um dia de trabalho passou na casa de uma amiga para conversar. Elas falaram durante cerca de duas horas. Depois, Cláudia embarcou o seu carro e rumou para casa, algumas quadras adiante. Consta na investigação policial que no caminho ela ligou para o seu companheiro, que estava em Porto Alegre. Seus parentes relataram terem ouvido o portão ranger quando a professora chegou em casa. Ela teria entrado e tomado banho antes de simplesmente desaparecer. Seus pertences pessoais ficaram sobre uma mesa, no interior da residência. Nunca mais foi vista. Em abril de 2025, o caso dela foi arquivado pela Justiça. Em 2019, quando o governador Leite foi eleito para o seu primeiro mandato, comentei com colegas repórteres que existia a chance real dele se interessar pelo caso. Afinal, Leite foi vereador (2011 a 2013) e prefeito (2013 a 2017) de Pelotas. Portanto, conhece os detalhes e a imensa repercussão que o desaparecimento da professora causou. Aqui é o seguinte. As delegacias de polícia, e Pelotas não é uma exceção, vivem abarrotadas de crimes para resolver. Geralmente, um desaparecimento, por mais ilustre que seja a pessoa, é candidato à prateleira dos “casos não resolvidos” se não for solucionado em 72 horas. Há um fato técnico para esse prazo de 72 horas. A cada dia que passa sem solução, este tipo de crime costuma ser contaminado por informações fantasiosas que circulam pela cidade. O governador está no seu segundo mandato e tem ambição de ser candidato a presidente da República em 2026. Já tentou, sem sucesso, ser candidato em 2022. Acreditei que, como governador, Leite mexeria no caso da professora Cláudia. Nem chegou perto. Vou contar uma historinha que julgo relevante para a nossa conversa.
Comecei a trabalhar em redação em 1979, sai em 2014 e atualmente ando pelas estradas procurando boas histórias para contar e fazendo livros-reportagem. Sabem? Quando o repórter sai da redação é acompanhado pela memória dos assuntos que cobriu. Vez ou outra, é acordado pela lembrança desses seus “casos não resolvidos”. Na redação, nas ocasiões de datas festivas, eu recebia ligações dos familiares de mulheres desaparecidas. Geralmente, perguntavam se tinha novidades. Continuo recebendo essas ligações. E sempre que surge uma oportunidade lembro dos casos no meu blog, Histórias Mal Contadas. O que governador poderia fazer por estas famílias seria montar uma pequena equipe policial para acompanhar a situação delas. Teriam um telefone para ligar e saberiam que o Estado se interessa pela tragédia da família. Lembro que, em 4 de setembro de 2018, escrevi o post Procurados vivos ou mortos, que relata a dura realidade dos familiares dos desaparecidos.
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