o fio das missangas

Telementira

 

 

“O problema não é ser mentira

É ser mentira desqualificada.”

(Provérbio da Munhava)

 

Um velho senhor aposentado desenha, na parede de um bar, um televisor. Ali assiste, todos os dias, às partidas da Copa do Mundo. Grita gol, entusiasmado. Chama-se Filipão Timóteo.

Do lado de fora, as pessoas assistem à cena e lamentam.

“Os outros fizeram sinal para que não se usasse os argumentos da realidade. Seria pior. Deixassem-no crer que nesse imaginário televisor desfilavam verdadeiros jogos, capazes de fabricar autênticas alegrias. A realidade não é um sonho fabricado pelos mais ricos?”

O filho mais novo tenta uma estratégia: traz-lhe, da cidade, uma carta da Federação Nacional de Futebol, convocando o aposentado para ir à capital, em razão de sua grande contribuição para o esporte.

“Essa carta é falsa!”, sentencia o velho. Mostra-lhe, em contrapartida, outra carta endereçada ao senhor Filipão Timóteo, com selo do Brasil e assinada por Ronaldinho Gaúcho.

E nesse limiar entre imaginação, realidade, mentira, verdade, o autor moçambicano Mia Couto, no conto “A carta de Ronaldinho”, nos deixa a pensar. O texto está na obra O fio das missangas, publicada originalmente em 2004.

Felipão Timóteo e sua televisão imaginária seriam uma loucura? Ou a loucura maior seria inventar uma carta para resgatar o velho da sua própria imaginação? Na ficção, a mentira é um pacto: iniciamos a leitura conscientes de que tudo o que é dito é invenção. Mas, e na realidade? Podemos fazer igualmente da mentira um pacto?

Essa é a pulga atrás da orelha que o conto nos coloca.

E falando nisso… Todos os dias temos assistido ao horror do cenário político brasileiro. Vejo os noticiários e já não sei distinguir o que é mentira, o que é mentira desqualificada, o que é ficção. Só consigo repetir a pergunta do narrador do conto de Mia Couto: “A realidade não é um sonho fabricado pelos mais ricos?”.

Talvez, por isso, eu tenha de tomar uma grave decisão: vou desenhar uma televisão – e um monitor de computador – na parede da sala. Não será uma (des)ilusão maior do que essas tantas que temos visto por aí.

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