JEANE BORDIGNON

Tempo de resgate, sobrevivência, cenário de guerra

Cresci ouvindo os relatos dos parentes sobre os dias em que o Rio Gravataí alcançou o portão da minha avó. Minha mãe conta que meu pai teve que entrar com o carro pelos fundos no terreno, porque o acesso pela Avenida Antônio Gomes Corrêa era impossível. Eu tinha apenas 3 anos e meio, não lembro de nada. Mas o registro daquela enchente faz parte do meu álbum de infância, como contei certa vez aqui na coluna: https://seguinte.inf.br/a-enchente-de-85/ (eu cresci acreditando que foi em 85, mas há pouco tempo fui corrigida por meus tios: a cheia foi mesmo em 1984).

As décadas passaram, e parecia que não aconteceria algo parecido outra vez. Pelo contrário, vi mais o rio definhando pela seca do que muito cheio. Mas maio trouxe a catástrofe para praticamente todo o estado. Minha avó não mora mais naquela casa de madeira, mas um dos meus tios ficou com a moradia. Ele e minha tia estão há dois dias abrigados aqui em casa, porque a água quase está chegando na residência, mesmo sendo ela construída sabiamente por meu avô com alguma distância do chão. É mais água que em 1984.

Apesar disso, ainda somos privilegiados em comparação com a maioria das cidades, porque poucos bairros de Gravataí estão cheios de água. A cidade está sendo mais um porto seguro para os vizinhos, principalmente de Canoas e Porto Alegre. A gente fica chocado com as imagens e sabe que está bem ao lado dessas cidades. As notícias angustiam cada dia mais. Parece que estamos vivendo num filme de distopia apocalíptica, mas é realidade. Estradas bloqueadas, muita gente sem água, sem luz, sem o básico. Amigos ilhados ou fora de casa. Os números de mortos só aumentam, e ainda vão aumentar mais quando as águas baixarem.

Um quando que a gente nem sabe quanto vai demorar a chegar. Hoje li que o Guaíba pode levar um mês para sair das ruas de Porto Alegre. Foi assim em 1941, aquela enchente que a gente ouvia contar e via nos livros. Depois dessa famosa enchente é que se ergueu o muro da Mauá, e passamos décadas acreditando que estávamos protegidos.

Mas nem o muro estava preparado para tanta água. Foi muito mais chuva do que estamos acostumados (e olha que gaúcho está acostumado com chuva que não pára por dias). Talvez os mecanismos de escoamento e contenção funcionassem, se não fosse o desmatamento e plantio em encostas acima de 25º de declive. As leis ambientais foram flexibilizadas em 2011, e o resultado estamos vendo agora. “São áreas com grande declividade, que quando chove acelera o fluxo da água para o rio, podendo levar junto muita terra e vegetação”, explica meu tio Roberto Bordignon, que é professor de Geografia. E como a gente sabe, vários rios desembocam no Guaíba. Inclusive o Gravataí.

Onde eu transito não tem água, mas na segunda-feira, enquanto eu esperava meu ônibus para casa, passou um ônibus pintado de branco, com as palavras “SOS Resgate” escritas com tinta spray, buzinando muito. Uma cena muito estranha de se ver. Parece que estamos num cenário de guerra, mesmo quem tá abrigado. Até porque quem não está precisando de ajuda, está ajudando. Mesmo que seja com divulgação. Estou evitando a linha de frente porque minha mãe ainda está se recuperando de uma questão delicada de saúde, tenho que preservá-la, Mas passo os dias divulgando tudo que posso nas minhas redes sociais e estou aqui fazendo o que faço de melhor, que é escrever sobre essa catástrofe. Já são mais de 400 municípios atingidos, é quase todo o RS alagado. Já perdi a conta de para quantos amigos e conhecidos eu respondi: “aqui em casa estamos seguros, mas abrigando familiares”. A preocupação é constante, e aumenta a cada nuvem que a gente vê no céu. É como eu li no instagram: “É longe da nossa casa, mas é a casa de alguém. Então estamos seguros, mas não estamos bem.”

O que dá um alento é ver tanta gente mobilizada para ajudar meu RS. Diversas campanhas, shows e lives beneficentes, influencers e artistas fazendo doações e arrecadando mais dinheiro, cervejarias suspendendo a produção para envasar água potável, empresas doando colchões, remédios… Nosso povo está precisando de tudo. Tem cidades completamente destruídas. A gente ainda nem sabe como vai ser a reconstrução, por enquanto a prioridade é resgate e sobrevivência. Já disse que parece um cenário de guerra?

No apoio aos desabrigados também tem muita gente solidária. Mutirões para fazer quentinhas e separar doações. Para conseguir água. Em meio a essa desgraça toda, é bonito ver tanta gente que olha para o próximo. Dá alguma esperança nessa humanidade que às vezes parece caso perdido. Minha amiga Dary Kern, artesã e “bombril”, como ela se define, tem se desdobrado num apoio de ponte entre o trabalho prático, de quem está atuando nos abrigos, e as doações que chegam via internet. “Ah, tem um quilo de arroz aqui, lá do outro lado da cidade tem um alojamento precisando de comida, sabe? Eu arranjo alguém que leve esse quilo de arroz pra lá, sabe?”. Ela também tem arrecadado garrafas pet para encher com água de seu poço artesiano e levar aos desabrigados.

Mas Dary ressalta que esse momento tem mostrado o melhor e o pior das pessoas. “Assim como tem esses anjos sem asas, que estão pipocando de tudo quanto é lugar, tem os demônios também, as pessoas mostrando o seu lado mais ruim, mais sem empatia… A gente sabe que tem centrais de doações, que as pessoas estão levando com a maior boa vontade as doações lá. E algumas, não são todas, graças a Deus, assim como eu digo que a humanidade tem esperança, não são todas, não vou generalizar, mas a gente sabe que tem vídeos circulando nas redes de pessoas que estão roubando, que estão estocando e que estão desviando donativos. Isso revolta, sabe? Isso revolta. Porque as pessoas estão ali para receber a boa vontade de outras pessoas. E as outras pessoas que chegam ali com uma doação, a intenção delas é doar, sabe? E a doação chega ali e às vezes não sai. Para uma família que está passando fome, que não tem um par de meia pra botar, que não tem um sapato, que não tem uma cama pra dormir, sabe? Que tem que dormir numa cadeira, que não tem um papel higiênico pra ir no banheiro, que não tem um shampoo, que não tem uma pasta de dente pra escovar os dentes, que não tem uma água pra tomar. E isso revolta. Isso revolta muito. A gente que tenta fazer o máximo para essa doação chegar até o local de abastecimento, a nossa intenção é chegar lá e ser deslocada essa doação para quem está precisando. Não interessa se ela tem a carteira de identidade, até porque ninguém tem identidade mais… Então, assim, é revoltante, é frustrante e é muito triste, sabe?”

Assim, seguimos, um dia de cada vez. Quem quiser colaborar com relatos da situação em Gravataí, pode entrar em contato comigo pelo instagram @jeanebordignon ou no Whatsapp 51 992518314. Ou ainda no e-mail jeane.bordignon@gmail.com . O Martinelli está em Porto Alegre, sem luz, abrigando animais resgatados e fazendo o possível para atualizar o Seguinte:. Então minha coluna está totalmente à disposição neste momento difícil. Afinal, eu me afastei das redações, mas sempre serei jornalista. Então, se você teve que sair de casa, ou está mobilizado como voluntário, ou apenas quer partilhar sua visão e sentimentos sobre essa situação que assola o Estado, é só me chamar. Juntos somos mais fortes.

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