Se você não sabe o que significa capacitismo, provavelmente tenha sido capacitista com frequência, sem saber. Isso não é uma acusação, apenas uma provocação para tomada de consciência, para um mundo mais inclusivo e respeitoso. Inclusive tenho a compreensão de que se trata de um conceito novo. A Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência) entrou em vigor em 2016, pouquíssimo tempo. Mas é preciso entender que não dá pra perpetuar uma estrutura social excludente e preconceituosa.
De uma forma bem direta, capacitismo é toda discriminação em razão da deficiência de uma pessoa. A palavra vem de considerar menos capaz a pessoa que tem alguma limitação. Cada um tem mais habilidade em algumas coisas e menos em outras, as pessoas apenas são diferentes. É sobre isso: enxergar a pessoa como um todo, e não apenas sua deficiência, que é uma de suas características, não uma definição. Agora fica claro porque termos como “deficiente” ou “especial” são altamente capacitistas, né? “Portador de deficiência” também está errado, embora tenha sido usado por bastante tempo. Hoje entendemos que ninguém porta uma deficiência, não é algo que podemos deixar de carregar quando quisermos. É uma característica. Como é o certo, então? PESSOA COM DEFICIÊNCIA. Simples, né? Em primeiro lugar, é uma pessoa. E tem uma deficiência como uma de suas características.
Somos mais de 14 milhões no Brasil. Sim, eu disse somos, porque também sou uma pessoa com deficiência. Tenho perda auditiva neurossensorial e faço uso de aparelhos auditivos em ambos os ouvidos. Sem eles, deixo de entender bastante coisa. É bem chato ficar pedindo toda hora para as pessoas repetirem mais devagar o que falaram. E mesmo de aparelhos, se o interlocutor falar muito rápido ou estivermos em ambiente barulhento, talvez eu precise fazer esse pedido.
Muito importante: os aparelhos não “consertam” a audição. Basicamente tenho um microfone em cima das orelhas que capta os sons e envia para uma espécie de ponto dentro do ouvido. Talvez aparelhos mais elaborados consigam filtrar mais os sons, mas os meus, do tipo que foi possível comprar, trazem tudo junto. Sabem quando a gente grava um vídeo no celular, e ele capta todos os sons do ambiente, deixando o áudio “sujo”? Pois então… é desse jeito que eu escuto. Se é desconfortável assistir um vídeo barulhento, imaginem ouvir assim o dia inteiro? Quando eu me afastar da conversa, não é nada pessoal, só o jeito da minha cabeça não explodir. Já tiveram a experiência de alguém gritar no microfone e quase estourar a caixa de som? Quando alguém grita perto de mim, o estouro é dentro do ouvido. Chega a doer. Não é frescura quando cubro os ouvidos, é instinto de sobrevivência.
Como eu dizia antes, somos mais de 14 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. E dentro desse universo, há uma grande diversidade. Mas parece que o senso comum acha que colocar uma rampa, contratar intérprete de LIBRAS e ter audiodescrição já deixam um evento ou espaço acessível. Só que as necessidades de uma pessoa que se locomove em cadeira de rodas são diferentes de outra que anda com próteses e de outra que usa bengala. É preciso lembrar que a pessoa cadeirante vai ter um campo de visão mais baixo. E não é porque a pessoa tem prótese ou bengala que pode ficar em pé por bastante tempo. Aliás, tem gente que não usa nenhum dos dois e também sente dores se permanecer em pé.
Um parêntese aqui: você gosta quando alguém se apoia no seu ombro como se fosse o parapeito de uma janela? Não, né? Pois apoiar-se na cadeira de rodas de alguém é tão invasivo quanto, porque o equipamento é como parte do corpo da pessoa cadeirante.
Também é necessário entender a diversidade dentro da deficiência auditiva. Há surdos que não escutam nada e só se comunicam por LIBRAS. Há outros que usam implantes cocleares e são oralizados. E tem aqueles como eu, que perderam parte da audição, usam aparelhos e são bastante invisibilizados, porque se os aparelhos não são notados, a gente “nem parece que tem deficiência”. Ah, o ódio que dá essa frase! Várias deficiências não são visíveis ou perceptíveis. Mas a minha perda auditiva está aqui, e eu preciso que você fale devagar e de frente para mim, ou vou perder várias palavras, mesmo com aparelhos. É bem cansativo fazer esforço para entender o tempo inteiro. Às vezes me sinto como um celular que fica procurando sinal de wi-fi sem parar, e a bateria vai embora ligeiro.
“Ah, mas você está toda hora em eventos, saraus, teatro, shows… “. Sim, porque amo arte e amo estar com meus amigos artistas. Mas só eu sei o esforço que me demanda. Porque o mundo é barulhento demais e capacitista demais. Não só pra mim, mas para todas as pessoas com deficiência e com neurodivergência (que muitas vezes coexistem na mesma pessoa). Tenho várias sensibilidades sensoriais que nunca investiguei e socializar nunca foi uma tarefa fácil. Talvez eu tenha mais coisas a descobrir sobre mim. Mas processamento sensorial, seletividade, neurodivergência, neuroatipicidade são termos novos, não existiam na minha infância e adolescência. Acostumei a ser considerada esquisita e fresca. Aprendi a conter minha vontade de sair correndo de ambientes com muita gente e muito barulho. Mas com a maturidade a gente tem cada vez menos paciência para se conter. Só queremos viver.
E nessa teimosia de viver no mundo da arte mesmo com a deficiência auditiva (por que não?), ontem ao me organizar para ir ao teatro percebi ainda mais claramente o quanto o capacitismo está entranhado na sociedade. A meia-entrada para pessoa com deficiência é só para quem recebe BPC ou é aposentado pelo INSS (“por invalidez” é um termo horroroso, já passou da hora de mudar isso). Quando compramos entrada inteira, não temos como comunicar que precisamos de alguma atenção de acessibilidade, como, no meu caso, sentar nas primeiras fileiras para conseguir escutar sem tanto esforço. Como se as pessoas com deficiência não fossem capazes de trabalhar, ter uma renda que permita comprar um ingresso.
Nós existimos! É até contraditório que as leis determinem reserva de cargos para pessoas com deficiência nos concursos e nas empresas, mas na hora de usufruir de cultura e lazer somos invisíveis. Os editais de fomento e leis de incentivo hoje em dia também cobram acessibilidade nos projetos. Mas para quem? E de que forma? Não é um favor ou uma esmola. É enxergar a diversidade do mundo em que vivemos. Ser inclusivo de fato, e não só pra cumprir a exigência do edital. Produtores, produtoras, plataformas de venda de ingressos: vamos virar essa chavinha? O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania fez um manual de acessibilidade bem completo: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoa-com-deficiencia/publicacoes/manual-de-acessibilidade-em-eventos-presenciais/Manual_acessibilidade_eventos_presenciais_DIGITAL__1_.pdf
Às vezes são pequenas atitudes, mas que fazem toda a diferença. Recentemente fui assistir o espetáculo Oxitocina, da Nós Companhia de Teatro. Na entrada, o diretor Everson avisou que haveria uma cena com luzes piscantes, mas seria apenas uma e depois a peça seguiria sem mais sustos. E acrescentou que aqueles que tivessem sensibilidade podiam fechar os olhos nessa cena. Deu até um quentinho no coração, sabe? Quando a luz começou a piscar, não fiquei tensa porque não fui pega de susto e sabia que seria breve. Desviei meu foco para um ponto menos iluminado do palco e talvez tenha sido a primeira vez que luzes piscantes não me deixaram ansiosa.
E não dá para saber quem tem neurodivergência ou alguma outra condição que deixe os sentidos mais sensíveis só se olhar para a pessoa. Quem vê cara não vê deficiência. Até porque somos muito mais do que nossas deficiências ou condições que necessitem de adaptações. Será que um mundo mais acolhedor, compreensivo, inclusivo e com menos barulho é pedir demais? Não adianta fazer story fofinho do Dia de Luta da Pessoa com Deficiência (que foi no último domigo), ou datas semelhantes, e nos outros dias ignorar nossas existências, com todas as nossas diferenças.