JEANE BORDIGNON

Todos podem amar! E casar!; Não, a gente não está no Conto da Aia, é 2023 mesmo

“Um homem pode, sim, amar outro homem. Um homem pode, sim, casar com outro homem se ele quiser. Pode ter filho, pode construir família com outro homem, sim!” Essas palavras foram ditas pelo personagem Kelvin, da novela Terra e Paixão, no capítulo do dia 12 de outubro. Um recado direto e em horário nobre para aqueles que estão tentando barrar o direito dos casais homoafetivos ao casamento civil. Também para os que censuram cenas de amor e afeto entre iguais na dramaturgia.

Pareço repetitiva, trazendo esse tema de novo para a coluna? Infelizmente temos que repetir à exaustão. Enquanto os direitos da comunidade LGBTQIAP+ estiverem sendo atacados, precisamos falar e exigir respeito. Enquanto pessoas estiverem sendo mortas pelo fato de se aceitarem como são, por amar fora dos “padrões”, precisamos lutar.

O tal Projeto de Lei que proíbe o casamento homoafetivo e que foi aprovado pela Comissão da Família nesta semana alega que “nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar”. De que entidade familiar estão falando? Daquela formada por mãe solo e filhos, como a maioria das famílias no Brasil, porque os homens não assumem as responsabilidades? Ou do pai que mantém o casamento, mas tem uma amante em cada esquina? Ou daquelas em que as mulheres são agredidas pelos parceiros na frente das crianças? Em que mundo essa gente vive, que ainda não percebeu um fato: relacionamentos héteros saudáveis são a exceção, não a regra.

O PL ainda tenta convencer, com base em argumentos religiosos (cadê o estado laico?), que o casamento de pessoas do mesmo sexo é “contrário à lei natural” por não proporcionar a procriação. E que aprovar a união homoafetiva abre precedente para adoção de crianças por esses casais, o que privaria os menores de referências “paterno/masculino (se são duas lésbicas) ou materno/feminino (se são dois homossexuais)”. Não, a gente não está no Conto da Aia, é 2023 mesmo.

E curioso que a falta de “referências paterno/masculino” das milhares de crianças que nem o nome do pai na certidão possuem, quanto menos a presença deles, parece não ser um problema para os “cidadãos de bem”… Num país em que o abandono paterno é tão normalizado, usar esse tipo de argumento para atacar o casamento homoafetivo chega a ser desonesto. Além da gente ter que sempre lembrar que a criança adotada por gays foi abandonada por héteros. Se for só abandonada, ainda é sorte, porque crianças são agredidas, abusadas, negligenciadas, violentadas, dentro da família “tradicional”. E um casal gay, que acolhe com o maior amor e cuidado, é que vai dar “mau exemplo”? Absolutamente não!

Essa votação já foi suficiente para azedar e indignar qualquer um que tenha o mínimo de senso. Não precisa fazer parte da comunidade para lutar junto. É só ter humanidade e empatia. Coisas que andam raras, curiosamente entre os que mais se dizem cristãos, mas não entenderam nada do que o Filho de Deus falou. “Amem-se uns aos outros”, a mensagem foi bem direta. Ele não instituiu regras para amar. Quem diz seguir o Cristo, mas busca argumentos no Antigo Testamento, também está muito equivocado. Mas cada um escuta e entende o que lhe convém, não é mesmo?

Eu dizia que só a votação desse PL grotesco já foi o estrago da semana… mas logo depois veio a notícia da morte da influenciadora Karol Eller, que “caiu” do prédio onde morava em SP. No mês passado, ela anunciou que tinha renunciado à sexualidade, passado pela chamada “cura gay”. Quantas foram as mãos que empurraram a Karol para a morte, ao convencê-la de que era errada e suja? Como conseguem dormir em paz e continuar pregando esses absurdos?

Em outra coluna contei sobre o Vinícius, amigo que foi espancado até a morte numa terça-feira de Carnaval, na Lapa, o coração da boemia do Rio de Janeiro. Mas no Rio conheci também o Adriano, que teve o corpo encontrado num córrego, cheio de lesões. Segundo testemunhas, o assassino, enquanto golpeava o rapaz, gritava “odeio viado”. A última lembrança que tenho do Adriano, no Sarau do Escritório, é um sorriso tão bonito! E enquanto eu morava na “cidade maravilhosa” também houve o caso da Mateusa, que foi executada por traficantes. Mas jamais vou julgar uma pessoa trans por procurar drogas para aguentar o peso de viver nessa sociedade cruel. Tenho vaga memória de ver a Mateusa em algum sarau ou evento. Apenas alguém tentando viver e ser feliz.

Para a Karol, o Vinícius, o Adriano e a Mateusa, é tarde demais. É horrível conviver com medo que algum dos meus amigos seja o próximo. Até quando vamos viver nessa sociedade adoecida e perversa? Sempre penso que se incomodar tanto com amor e afeto é sinal de que a pessoa tem algo de muito errado. Esses “defensores da moral” só podem estar muito descontentes com as próprias vidinhas medíocres, para cuidarem tanto da vida alheia. Gente feliz não perturba os outros.

Por isso é tão importante que os personagens Ramiro e Kelvin estejam trazendo a discussão do amor entre homens de forma tão delicada e didática, na novela Terra e Paixão, na maior emissora de TV do país. Acho muito perspicaz a forma como os sonhos do Ramiro estão sendo usados para mostrar o processo de evolução dele, de desconstrução das ideias que ele ouviu a vida inteira. Para nós que já somos desconstruídos como o Kelvin, a história até parece lenta demais. Mas é preciso entender que as cenas do casal estão sendo feitas para os milhares de Ramiros que existem nesse país ainda tão conservador. E os personagens estão atingindo muitas pessoas que não se abriam para esse tipo de assunto. A arte é uma das principais ferramentas para combater o preconceito, e está sendo usada com excelência pelos autores, diretores e os atores Amaury Lorenzo e Diego Martins. Estão prestando um grande serviço para o Brasil, e nos dando esperanças de que aos poucos, a sociedade melhore.

Se a gente não acreditar que poderemos viver num mundo menos hostil, fica difícil suportar essa realidade onde as pessoas ainda são atacadas apenas por amar.

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Receba nossa News

Publicidade